1 Julho 2019      10:38

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Putin: “O liberalismo tornou-se uma teoria obsoleta”

Imagem de Marcos Brindicci, no South China Morning Post

Decorreu recentemente a Cimeira do G20 de 2019 em Osaka, onde fomos presenteados com esta declaração de Putin, que defende que o liberalismo está obsoleto e com o seu propósito ultrapassado.

Não deixa de ser interessante que esta declaração venha da voz de um político que não só, nunca acreditou no liberalismo, como lidera um país onde o liberalismo nunca existiu na prática.

Todavia, Putin têm razão, e ao mesmo tempo não.

Não a tem na medida em que a morte do liberalismo já havia sido prenunciada outrora na história. A vaga de totalitarismos a que se assistiu na Europa nos anos 20 e 30 do século passado assentava grande parte da sua retórica nessa acusação, que o liberalismo não só estava ultrapassado, como nos tinha levado à balburdia civilizacional e à imoralidade e devassidão social. Não nos esqueçamos que Salazar, nos seus primeiros anos de poder, se assumia como anti-liberal, expressão que hoje evoluiu para iliberal, cunhando os regimes democráticos onde forças ditas populistas alcançaram o poder como Itália, Hungria ou Polónia.

Pese embora se diga que a história se repete, isso não é verdade, a história rima. Os erros civilizacionais é que se repetem, e fazem com que a história de hoje rime com partes da história do passado.

E foi nesse passado precisamente que, tal como hoje, se declarou o liberalismo (regra geral apelidado de “capitalismo”, muitas das vezes de forma pejorativa) como obsoleto nos anos 20. Resultando no despoletar de novas contra teorias que foram crescendo até aos anos 30, como o fascismo e o comunismo, que consideravam o liberalismo como algo esvaziado de futuro histórico.

Em primeiro lugar teremos de contextualizar a teoria. O que é o liberalismo? Resumidamente, é um modelo de sociedade que dá primazia à soberania do eleitor na política (ou seja, promove a democracia, delegando aos povos a escolha dos seus líderes), assim como promove a soberania do consumidor no mercado (ou seja, promove um mercado livre sem planificação governamental). Este é o “bê à bá” da teoria liberal.

Em princípio a maioria concordará tanto com a liberdade de podermos escolher os nossos líderes, como com a liberdade de podermos comprar e vender livremente o que quisermos dentro dos limites da lei, lei essa, criada pelos representantes que nós elegemos.

A título de opinião pessoal, o liberalismo é – de todas as teorias que conheço – a teoria que melhor promove um equilíbrio entre a vivência mais democrática possível e a maior qualidade de vida possível do ser humano.

Todavia o liberalismo, como qualquer ideia, está longe de ser perfeito, como todas as outras correntes ideológicas, tem as suas degenerescências hediondas. O fascismo degenera tendencialmente em opressão e desumanidade terceiro-mundista, o comunismo degenera tendencialmente em repressão e pobreza, e o liberalismo degenera tendencialmente em exploração e em perda de valores morais.

A última vez que o liberalismo degenerou, em finais do sec. XIX, surgiram duas grandes contra teorias, o fascismo e o comunismo, e rebentaram duas guerras mundiais. Todavia, o liberalismo soube reinventar-se, derrotou o fascismo, sobrevivendo às guerras mundiais, e derrotou mais tarde o comunismo após a longa guerra fria. Essa reinvenção passou em grande medida por uma solução híbrida, que mesclava estratégia politico-militar (conflito puro como as grandes guerras ou guerras “proxy”), e estratégia propagandística, levando a cabo uma forte guerra de informação entre as diferentes facções que se intitulam de virtuosas e se acusam de viciosas. 

Hoje assistimos novamente a um conflito propagandístico de larga escala entre forças ditas liberais e forças ditas iliberais; onde iliberais acusam liberais de promover a perda de valores morais e uma afluência enorme de migrantes de territórios vizinhos e de culturas substancialmente diferentes das nossas; e onde liberais acusam iliberais de retórica anti-democrática e de desumanidade para com requerentes de asilo.

Não vamos abordar quem tem razão nesta guerra, pois nenhum lado tem, tendo os dois em simultâneo. Vamos focar-nos novamente nas palavras de Putin.

Para Putin o liberalismo está obsoleto essencialmente porque caiu em degenerescência, o que, segundo aquilo que a história comprova, não significa que este vá invariavelmente deixar de funcionar. Irá deixar de funcionar nestes moldes que o conhecemos, porém, caso sobreviva, será por pura reinvenção tal como aconteceu anteriormente, absorvendo parte da retórica das contra teorias, como já o fez com o fascismo e com o comunismo, esvaziando assim o sentido das mesmas, gastando-lhes as próprias balas. Não será por aí necessariamente que o liberalismo irá dar-se como obsoleto.

Contudo existe essa possibilidade. O maior desafio do liberalismo não será o aparecimento de contra teorias anti-liberais, mas sim, o próprio avanço tecnológico que este gera.

Prevê-se, caso não ocorra um conflito económico-militar de larga escala, que o avanço tecnológico, a longo prazo, possa fazer com que o ser humano se torne obsoleto no mercado, sendo substituído na totalidade por robots e algoritmos capazes de desempenhar tarefas a um nível super-humano quer na força de trabalho, quer no campo intelectual da tomada de decisão. É completamente incerto, no futuro, se a tal “soberania do consumidor no mercado” ainda fará sentido no mundo do algoritmo, se a perda de empregos não despoletará colossais revoluções de escala internacional, ou se a “soberania do eleitor na política” não será transferida para a confiança em algoritmos capazes de tomar decisões analiticamente super-humanas no campo político, o que poderá desprover as eleições de sentido, ou até a própria democracia, transformando-se esta numa ditadura digital. Todas estas questões podem e devem ser colocadas em cima da mesa hoje, e quanto mais rápido melhor.

Resumidamente, estas declarações de Putin são nada mais do que propaganda pró iliberal, tal e qual como os governantes liberais aspergem a toda a hora propaganda liberal, grande parte das vezes tendem a acompanhar a degenerescência desta, transfigurando o próprio liberalismo numa espécie de proto-libertinismo.

Para a guerra de informação em que vivemos, sabemos que o liberalismo a consegue superar, pois, já o fez. A grande prova de vida virá depois.

 

Imagem de capa de Marcos Brindicci, no South China Morning Post.

 

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