14 Novembro 2021      16:57

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Procuro o meu rosto no espelho: mudou, por isso parti-o e fui punido

(Busco mi cara en el espejo; es otra.

Por eso lo rompí y me castigaron.)

Procuro o meu rosto no espelho: mudou, por isso parti-o e fui punido.

 

- Olá, eu não te vejo há muito tempo.

- Quanto tempo?

- Eu não sei exatamente. Tu pareces mudado na aparência.

- É exatamente assim que vocês percebem o tempo aí, na face mutante dos entes queridos ao seu redor, na mudança na aparência das lojas de rua que vocês conhecem, na ferrugem que se apropriou de uma ferramenta que nunca mais foi manuseada, no novo descascamento que aparece na parede do quarto em que moram, na maneira como falam seus filhos que vivem noutro lugar e que voltam para visitá-lo: tudo onde o seu olhar ficou pouco mais do que um pouco distante. O tempo está todo no teu olhar, não nas imagens que ele vê.

- Tu queres dizer que tu não envelheces ou não mudas realmente?

- Um diafragma de metal fino separa-nos. É aquele que te devolve a tua figura através da ligeira deformação do vidro e é o guardião deste espaço sem medidas lotado de imagens. Aqui, como nos sonhos, nada realmente acontece, mesmo que viagens e encontros significativos ocorram, num tempo impalpável. O meu olhar não tem os teus olhos, às vezes és tu que vês com os meus.

- Então tu não me vês!

- Eu vejo o que tu vês de ti mesmo e tudo o mais que se reflete enquanto estás à minha frente.

- O que vês então?

- Que tens barba comprida, que percebes que estás envelhecendo e que não gostas disso, mas que isso não te tira a tua alegria.

 

Nota de autor - Agradeço a JL Borges pelo título, que tirei da Tamerlan, na coleção El Oro de los Tigres, 1972.

 

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Giuseppe Steffenino, natural do noroeste da Itália, está ligado a nós pela admiração que ele tem a Portugal e ao Alentejo em particular, onde, com a sua companheira, Manuela, foram salvos de um afogamento numa praia o ano passado. Aqui e ali a pandemia está a mudar a nossa maneira de viver e pensar. Esse médico com barba branca, apaixonado por lugares estrangeiros e um pouco idealista, interpreta este tempo curvo, oferecendo-nos os seus sonhos, leituras, viagens, lembranças, pensamentos, perguntas, etc.