15 Agosto 2020      15:03

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Piruças (O cão que não conhecia o dono)

Alexandre, o cão Pastor tinha um rebanho de 200 cabras e 150 ovelhas. Vivia num monte alentejano perto de Almodôvar. Era uma propriedade muito grande, onde os animais pastavam o dia inteiro livremente. Alexandre retirava todo o seu rendimento desses animais. Ordenhava, com os seus empregados e com a sua mulher, as ovelhas e as cabras todos os dias. Havia naquele monte toda uma rotina que se repetia. Nasciam os borregos e os cabritos. Vendiam-de alguns desses borregos e esses cabritos. Outros cresciam para se tornar parte do rebanho. Tinha três bodes e cinco carneiros. Esses garantiam a continuidade do rebanho e a viabilidade do negócio.

Entre os seus empregados, havia um de seu nome Piruças. Era um jovem ainda que dedicava todo o seu esforço ao trabalho que realizava. Vivia no monte, na casota dos empregados. Aquilo que mais gosto lhe dava era comandar o rebanho nas planícies e nos pastos. A sensação de liberdade pelos campos fora era indiscritível. Era um campo a perder de vista, só modificado pelas cores das ovelhas e pelas cabras algarvias que se dispersavam, às vezes, nos campos. Era aí que entrava em acção o Piruças, como encarregado do pessoal.

O encarregado punha ordem no pessoal e deixava tudo na linha. Era a sua paixão profissional. Bastava ouvir um assobio do Alexandre para saber as ordens a seguir. Um assobio mais grave significava virar para a esquerda. Um assobio mais agudo era indicação para virar para a direita e um misto dos dois era para voltar ao curral.

Porém, e como estas histórias todas têm um reverso, havia no fundo do campo, um penhasco onde o ribeiro passava. Nunca Piruças deixava ninguém aproximar-se do penhasco. Nunca, não é bem verdade. Houve um dia em que caiu, em terras alentejanas, uma trovoada imensa. Caiu um temporal tão forte nos campos e o rebanho foi apanhado de surpresa. Apanhados de surpresa, ficaram enclausurados entre o penhasco e o ribeiro. Piruças, apercebendo-se do perigo, pensou de imediato em seguir as ordens do dono. Só que, com o barulho que se ouvia, não percebia bem o que devia fazer. Ora empurrava para um lado, ora empurrava para o outro e não conseguia pôr o rebanho onde queria. Um dos bodes, já irritado com o andar da carruagem, irou-se com o Piruças e empurrou-o pelo penhasco abaixo. O pobre cão caiu nas rochas do ribeiro e, com um forte traumatismo craniano, mas sobrevivente, voltou ao monte, sem saber muito bem como.

O insólito é que a queda deixou-lhe um estado amnésico tal que Piruças não reconhecia ninguém. Alexandre não sabia o que fazer com ele. Acarinhou-o mas não lhe pode dar trabalho. O encarregado não o conhecia. Nem a ele nem a ninguém. Era cão que não conhecia o dono.

A carreira profissional do Piruças acabou nesse dia. Foi aposentado compulsivamente. O segundo, Pompilho, tomou conta do rebanho e passou a comandar o rebanho. Piruças, não tendo qualquer remorso nem ressentimento, pois não se lembrava de nada. Viveu uma vida pacífica a partir daí, aposentado, com uma reforma do Estado, e nunca mais percebeu os assobios. Tinha perdido também a audição e até ao fim dos seus dias, passou a ser Piruças, o cão que não conhecia o dono.