13 Abril 2020      23:11

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A Peste Negra no Portugal Medieval: A História e a Ciência entre o Passado e o Presente

André Silva é doutorando em História Medieval na Universidade do Porto e integra as equipas de investigação do CITCEM – Universidade do Porto e do CIDEHUS – Universidade de Évora. O seu percurso académico é focado no estudo dos contextos socioculturais e económicos associados à História das Ciências da Saúde, no período medieval em Portugal.

André Silva integra a iniciativa do Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades da Universidade de Évora, a que nos associamos, e que através de entrevistas, artigos de opinião, notícias e artigos de divulgação científica cruza a investigação em História e Ciências Sociais com o mundo actual, desacelerado pela pandemia do novo Coronavírus. O investigador é entrevistado por Sónia Bombico.

Sónia Bombico: O André encontra-se, actualmente, a desenvolver uma tese de doutoramento sobre a Peste Negra no Portugal Medieval. O que é exactamente a Peste Negra, como e quando é que chegou a Portugal? 

André Silva: A Peste Negra é a designação tradicionalmente aplicada ao surto inaugural da segunda pandemia de peste, que se prolongou até ao século XIX. Devastou a Europa entre 1347 e 1353, ainda que, na maioria dos territórios, se tenha tratado de um fenómeno concentrado em poucos meses.

A expressão não é da época. Trata-se de uma fórmula adaptada a partir de crónicas escandinavas do século XVII, por historiadores oitocentistas, e que acabou por se tornar canónica. Essa expressão traduz-se literalmente por “Morte Negra”, forma que se mantém nas línguas germânicas (como a Black Death inglesa). Nas línguas românicas, acabou por cristalizar sob a forma de Peste Negra. Durante séculos, foi recordada como a “Grande Peste” ou a “primeira peste”, por exemplo.

A peste é uma zoonose, ou seja, uma doença típica de um conjunto de animais, (neste caso, alguns roedores) que afecta o homem por acidente. É provocada pela bactéria Yersinia pestis, e manifesta-se de várias formas, das quais as mais comuns são a bubónica (através do sistema linfático, que provoca inchaços terríveis nos gânglios linfáticos, os bubões), a pneumónica (primária ou secundária, quando a infecção atinge os pulmões) e a septicémica (quando se produz uma infecção generalizada). A infecção faz-se através de um insecto vector (certas espécies de pulgas dos roedores) que injectam a bactéria quando se alimentam nos seus hospedeiros, ou se contaminam com ela quando picam hospedeiros infectados.

Em Portugal, a entrada ter-se-á feito no início do verão de 1348, e não no início do outono, como algumas fontes indicam, e, provavelmente, prolongou-se até aos primeiros meses de 1349. A contaminação inicial deverá ter acontecido por via marítima, através dos portos portugueses mais movimentados, com Lisboa e Porto à cabeça.

Sónia Bombico: A sua investigação pretende compreender e medir o impacto e as consequências da Peste Negra no Portugal de Trezentos. Que tipo de impacto é possível analisar e que fontes existem para o seu estudo?

André Silva: O impacto da Peste parece ser transversal a toda a Europa, Médio Oriente e Norte de África (pelo menos). Porém, as várias vertentes desse impacto são alcançáveis de maneira distinta em cada um dos territórios. Os estudos dedicados às regiões mais bem documentadas (Inglaterra, Norte de França, Norte de Itália, etc.) focam-se, em primeiro lugar, no impacto demográfico – seja através da mortalidade propriamente dita, ou da reorganização dos sobreviventes, como as alterações nos casamentos e nas estruturas familiares; esta análise acaba por nos conduzir às questões socioeconómicas, de maior alcance temporal e – se os vestígios e os testemunhos sobreviventes tiverem essa riqueza – à influência que o fenómeno teve nas mentalidades colectivas, na arte e na espiritualidade.

Em Portugal, boa parte destas fontes não existe ou existe em conjuntos muito fragmentados. Porém, não creio que isso impeça o estudo do tema no ocidente peninsular: obriga-o a ser indirecto, apenas. Optei por recolher todo o tipo de documentação produzida em duas regiões portuguesas – Entre-Douro-e-Minho e Entre-Tejo-e-Odiana –, ou a elas dirigida, entre 1310 e 1379. Em Portugal, por exemplo, escasseiam para este período os testamentos, que são uma das fontes mais utilizadas nos estudos históricos da peste, mas temos grandes conjuntos de contractos enfitêuticos, ou seja, contractos onde um proprietário (normalmente, uma instituição, pois a esmagadora maioria da documentação privada perdeu-se) cede o domínio útil de uma terra ou imóvel a um enfiteuta (arrendatário), por um período de anos (arrendamento), vidas (emprazamento) ou em perpétuo (aforamento), mediante o pagamento de uma fracção da produção, uma quantidade pré-definida de géneros, uma quantia em dinheiro ou uma mistura de todos estes. As alterações que são feitas aos formulários destes contractos, os seus fluxos de produção, as alterações de rendas entre o período pré-peste e pós-peste, são indicadores de que há um momento de mudança, seja ruptura ou transição.

O estudo da chamada Peste Negra é, por isso, indirecto no caso português. Mas pode ser feito, sobretudo incidindo sobre o impacto social e económico da epidemia.

Para continuar a ler em: https://narrativasdeumapandemia.wordpress.com/2020/04/13/a-peste-negra-no-portugal-medieval/