Estes dias frios de Inverno que agora se aproximam trazem-me à memória aquelas noites meio frias da minha infância, quando ainda não tínhamos eletricidade em casa. Devia ter aí uns cinco anos. Naquele tempo, anos 80, ainda muitas infraestruturas estavam por construir nos perdidos montes da Serra do Caldeirão. A estrada ainda era de terra batida que, também nestes dias, se enchia de água e nem as valetas conseguiam escorrer toda a chuva que o céu e as nuvens deixavam cair nos campos, outrora castanhos e começavam a despontar em verde, depois de as sementes terem bebido a água e se terem começado a transformar.
Nesses dias frios de inverno em que a chuva prevalece, não havia muito a fazer no meio da Serra. Talvez chapinhar nas poças de água, levar um ralhete das mães e ficar todos enlameados. Podíamos construir barragens com a água da chuva. Também podíamos passear pelos montes a procurar os cogumelos chanterelle e as pucarinhas de sementeira que nasciam no meio das terras mais férteis. Onde havia o húmus rico dado aos homens pelas folhas das árvores conseguia-se, não raro, encontrar os preciosos fungos já mutados eles também. Nesses dias em que não chovia, intervalando todos os outros, caiam as gotas lentamente das árvores, mas essas não molhavam tanto e não impediam que percorrêssemos os montes em busca desses cogumelos para vender. Na altura ainda se conseguiam uns bons mil escudos por quilo.
À noite, não havendo eletricidade ainda, havia direito a uma hora de televisão, alimentada a bateria. Viam-se os bonecos na televisão, o telejornal e desligava-se para poupar a bateria que não raro tinha de ser trocada. Hoje em dia, as televisões passam mais tempo ligadas e sozinhas do que nessa altura. Depois da televisão, era hora de pensar na ceia. À beira da lareira, o tacho, cheio de água que começava a caminhar para o ponto de ebulição, deixava adivinhar qual seria o próximo passo e que ingredientes se juntariam à água a ferver naquele tacho. Num saco, o xerém aproximava-se do lume e do tacho e, calmamente, começava a misturar-se com a água, mexendo até ficar em ponto firme. Eram papas, papas de milho.
Milho que tinha sido plantado na horta meses antes, apanhado e desenroupado em clima de festa no fim do verão. Sortudo aquela ou aquele que encontrasse o milho rei, roxo e sinal de sorte. Nunca me calhou, mas nem por isso deixei de ter sorte. Uma vez, no Euromillhões ganhei 50 euros. Não ganho mais vezes porque não jogo. Sorte, sorte era comer estas papas de milho tão cuidadosamente preparadas, acompanhadas de sardinhas salgadas e fritas.
Havia nas papas de milho qualquer coisa de especial que nos transportavam ao mundo do milho e do reino dourado. Quentes sabiam bem, mas sabiam ainda melhor no dia a seguir, de manhã, frias… transformavam-se em algo semelhante à polenta italiana mas com mais riqueza, um gosto mais natural e mais rústico que as transformavam em algo sublime.
As papas de milho era o sonho de criança, amarelas, douradas, o xerém criava autênticas memórias e deixava, claramente, em segundo plano, os bonecos e a televisão. A alegria de umas papas de milho eram uma dezena de crianças estafadas e quase adormecidas que se refastelavam em cadeiras de madeira e vime, à beira da lareira quentinha, com as papas de milho nos pratos em cima dos colos. Essas crianças que eram eu, olhavam a lareira e sonhavam com os dias à frente como se aquela fosse um portal para o mundo imaginado pelos escritores adultos e, de barriga cheia, adormeciam com as bochechas vermelhas do calor do fogo.
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