5 Março 2016      10:40

Está aqui

PALAVRAS CRUZADAS

Nunca fui pessoa de completar um jogo completo de palavras cruzadas de uma assentada. Tentei algumas vezes, umas com sucesso, outras de forma infrutífera, chegar o mais longe possível na descoberta das letras e das palavras, a partir dos seus significados dados nas pistas. É tudo uma questão de semântica, dir-se-ia. E é com essa semântica que se procura chegar aos sentidos das palavras e ver que letra se encaixa naquele quadrado particular. É preciso que se adeque ao vertical e ao horizontal.

Há palavras que facilmente se intuem, no seu sentido, nas suas possíveis definições. Nunca fui pessoa de conseguir olhar para a página e conseguir, de uma assentada, visualizar as palavras todas nos quadradinhos verticais e horizontais. Cada vez que me sento no metro, a caminho do trabalho, olho para o lado, olho para os rostos que se concentram, todos, em alguma coisa. Concentro-me a observar todos e cada um deles, discretamente. Se me olham de volta, desvio o olhar. Não quero que percebam que observo os seus hábitos, os seus gestos. Uns seguem de olhos fechados. O seu percurso é mais longo do que o meu. No meu não há tempo para ler, escrever. No deles, sim. Já virão de longe; especulo. Outros olham para os seus telefones, quem sabe a ler as notícias do dia, a falar com os amigos, a discutir assuntos da atualidade. Talvez. Não sei. Especulo.

Nas palavras cruzadas não há tanto lugar a especulação como nesta ideia de olhar e tentar perceber o outro. Muitas, tantas vezes, não é uma questão de lógica. As coisas só por si não fazem sentido nem se podem colocar nos quadradinhos, como se se tratasse de palavras cruzadas. Olho para o lado esquerdo. Duas pessoas leem dois livros. Três pessoas seguram um copo de café de uma dessas marcas comerciais que são iguais aqui, na China e na Austrália. Ao fundo da carruagem, uma senhora, sentada, olha o jornal dobrado em quatro e, segurando-o com uma mão e a caneta na outra mão, tenta completar um quadro de palavras cruzadas como se procurasse nele desvendar o sentido da vida. Como o sei? Pelos traços do seu rosto, pela sua ambição espelhada nos olhos e pelas diferentes expressões faciais que se desenvolvem a cada nível de dificuldade.

Especulo o tema das palavras cruzadas. Cada desafio tem um tema e cada um dos temas tem sempre níveis de dificuldade. Todos eles, uns mais do que outros, contribuem para o meu nível de especulação. Não sei o que escreve nem se acertou na palavra e se essa mesma lhe permitira adivinhar a próxima. 1 vertical: Ato de especular; 5 horizontal: símbolo químico da curiosidade.

Nada é linear. Nem as palavras terão um só sentido, nem a humanidade é unidimensional como uma folha de papel onde se podem colocar os quadrados de um desafio. Mas, não obstante todos os condicionalismos da minha especulação meramente académica, vulgo curiosidade, há algo que me fascina nas palavras cruzadas. Não só o facto de não as conseguir terminar de uma assentada, mas, principalmente, por poder escrever sobre elas e especular no modo e na forma. Nada é linear no sentido das coisas e a semântica é como uma carruagem cheia de pessoas diferentes. Cada uma delas é um reservatório de palavras que se cruzam, um dia, todos os dias.  

Imagem daqui