26 Dezembro 2020      12:36

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A ovelha que falava línguas

Há muitos, muitos, mas mesmo muitos anos, viveu uma ovelha nas serranias do Caldeirão, ainda no concelho de Almodôvar.

Era uma ovelha sem dono. Não tinha dono, porque nunca ninguém lhe tinha dito o que fazer. Andava e vivia junto com o rebanho mas sentia-se livre e não tinha de dar satisfações a ninguém. Por isso, a ovelha não tinha dono. Nunca tinha tido e assim gostava de permanecer. Na sua ideia de ovelha, aquilo de estar no meio de um rebanho, com um pastor que lhe dava comida todos os dias, não significava que tivesse dono. Era independente. Bem, tinha de ir para onde a mandavam, junto com as outras ovelhas mas mesmo assim gostava de pensar que era livre.

A ovelha chamava-se Pinta. Chamava-se assim porque no meio da sua esbelta lã, tinha uma pinta preta. Não era diferente das outras ovelhas mas tinha uma particularidade. Nem ela, nem ninguém sabia bem como, mas ao contrário das outras ovelhas que passavam o dia a fazer méeee, a nossa Pinta falava línguas. Falava inglês, francês, espanhol e até português. No meio do rebanho, ouvia-se além de um uníssono, ou não tão síncrono meeeeé, a dissertação em inglês dos sonetos de Shakespeare, citações de Voltaire, excertos de D. Quixote e até versos dos Lusíadas e da Mensagem.

Obviamente, ninguém percebia nada do que ela estava a dizer e, no meio da barulheira das outras ovelhas... inevitável será dizer que não se percebia mesmo nada. Porém, Pinta falava línguas. Muitas! Não tinha era ninguém que a entendesse ou que falasse com ela.

Sentia-se sozinha, era como falar para uma parede. De que lhe servia tanto conhecimento quando nunca nenhum dos seus pares lhe iria responder de volta? Tanto conhecimento desperdiçado, tantas citações que só recebiam um mééé assíncrono de volta.

Infeliz, pensou em afastar-se do rebanho. Chegou o dia em que sairia só. Caminharia os montes da serra em busca de quem falasse línguas como ela. Fugiu de madrugada quando todos dormiam. Andou, andou, andou. Ao fim do terceiro dia, quase lusco-fusco, avistou no cimo de um monte, uma figura. Em cima de uma pedra, um esbelto carneiro. Correu até ele pensando que poderia estar ali uma outra alma que partilhasse do dom de saber línguas. Bem jeitoso que era o animal. Aproximou-se, tornando sedutoras as suas ancas de ovelha, e atraiu imediatamente a atenção do Carneiro. Mal a viu, os olhos dele embeveceram-se e ele desatou a falar com ela, em russo... a pobre Pinta olhava-o e não percebia nada do que ele dizia. Falava com ele em todas as línguas que conhecia e ele não percebia nada do que ela dizia.

Frustrados, ambos, decidiram soltar um mééé, em uníssono e perceberam exatamente o que queriam dizer. A partir daí, cada vez que queriam comunicar, usavam a mesma linguagem e assim continuaram a entender-se bem o resto dos dias. Sozinhos, ele continuava a citar Tolstoi, Gogol e Dostoevsky. Ela recitava Lorca, Baudelaire, Proust, Eça e até Christoper Marlowe. Diga-se que foram felizes para sempre, cada um à sua maneira, mas foram!