7 Outubro 2017      09:52

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OS CÃES PASSAM E A CARAVANA LADRA

Era uma família nómada que vivia ali na beira do rio. Eram hippies alentejanos que tinham aprendido a conviver com a natureza de forma tão natural que se confundiam com a própria natureza em si. A mãe era as águas e o pai a terra de onde floresciam os vegetais e as frutas com que se alimentavam todos os dias do ano. A mãe era calma como as águas dos ribeiros, sem ondas que só suavemente se tornavam em ondulação. A mãe nunca gritava e nunca se chateava com os quatro filhos que tinha. Vivia no pacifismo das águas. Podiam ter-lhe dado, até, em honra disso, a alcunha de Mãe Água. Mas não deram. O pai era terra. Terra pura, fértil, de onde o alimento para toda a família saía.

Depois, compunham a família os dois elementos restantes, Ar e Fogo. Ar era o mais novo, andava sempre com a cabeça no ar. Talvez por isso lhe chamassem assim os pais, com carinho. O Ar, o Arzinho. Foi um ar que lhe deu. Cabeça no Ar. Andar sempre no Ar. Enfim, o nome mesmo era Artur. Percebe-se. Fogo era a menina mais velha. O nome mesmo era Florência, mas não havia um elemento na família que assim a tratasse. Era Fô. Fô, Gô. Desde pequenina revelara uma personalidade fortíssima, agarrada à água e à Terra como ninguém, mas sempre independente, rebelde. Até o Ar aparecer, Fô era o centro das atenções. Viria a ficar, devido a esse protagonismo dado aos filhos únicos, mimada. Conseguia o que queria e isso era importante.

Assim era esta família de hippies alentejanos. Princípios certos, comunhão com a natureza e uma vida calma. Ensinavam os filhos em sistema de home schooling, ali mesmo à beira do ribeiro. Aprenderam as primeiras palavras olhando para os objetos e repetindo, olhando para as plantas e dizendo o nome, apanhando os peixes na ribeira e memorizando o seu nome. Era um ensino muito focado no discente. A vida era pacífica. À noite ouviam-se os grilos e as cigarras. De manhã cantavam os galos e os passarinhos. Era uma família alentejana, hippie.

Tinham dois cães. Animais que se tornaram a imagem dos seus donos, por personificação e assimilação da personalidade dos senhores seus donos. Eram cães calmos, nunca ladravam. Sentavam-se à sombra enquanto os pais ensinavam os pequenos, debaixo da azinheira e escutavam atentamente a lição. Só lhes faltava falar, mas não ladravam. A fêmea era um cão de água português e o macho era um rafeiro alentejano. Raça pura. A calma dos dias e das noites, sem sobressaltos. Não ladravam.

Uma caravana era o local de repouso da família. Nela viviam os quatro. Cá fora, a guardar os dois cães que nunca ladravam, ora de um lado para o outro, à noite, deitavam-se na azinheira mais acima, ora viravam-se e iam para o sobreiro mais abaixo e, sempre atentos, protegiam os quatro elementos. A caravana era já um local de abrigo antigo e, por isso, ressentia-se do tempo e o motor, quando era preciso ligar o aquecimento, nas noites frias de inverno, porque nem tudo era paradisíaco, fazia um barulho assim, digamos, meio estranho. Verdade. Parecia um cão a ladrar. A imagem, no meio do pacifismo todo, parecia surreal, mas tanta coisa que nos acontece no dia-a-dia é surreal que, digo eu, nem vale a pena questionar. E assim, principalmente nas noites, calados os cães, de um lado para o outro, a vigiar e imbuídos do instinto de proteção, os elementos da família a dormir e a caravana a ladrar, onomatopeicamente. Tudo junto, um ambiente bucólico de onde surgiria a expressão - os cães passam e a caravana ladra. Ladrava mesmo.

 

Imagem de hypeness.com.br