24 Fevereiro 2019      11:46

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O utente petrificado

(memória informe de um filme de horror cujo título se perdeu):

O utente sente uma dor que tenta esquecer. Mas a dor persiste, aumenta ao ponto de não se prestar a equívocos. Deixou de incomodar e já passou definitivamente a doer. O utente, que passou o dia inteiro a evitar sair de casa, olha em volta e em cada parede vê reflectido o Inferno. Exageramos, é claro, mas nenhum de nós está a sentir aquela dor. Pode, por isso, viver de uma forma que ao utente petrificado está vedada.

Sob os luxuosos auspícios da filosofia da saúde. Criadores de significados com sentido lógico evidente. Deste modo está correcto, aquele é certamente inadequado e o outro tem ainda a vantagem da eficácia comprovada. Com talento, alguém consegue verificar sem margem para dúvida que o correcto liga vertiginosamente com o eficaz, e obtém, portanto, o cenário perfeito.

Definiu-o, descreveu-o, alinhou-o. Sorridente, vai apresentar o cenário. É recebido entre feixes luminosos e suspiros vários, há desconforto no ar. O que os cenários têm de perfeitos colide com os mas que inevitavelmente se seguem aos sins. É quando sub-repticiamente despontam os hábitos cujas raízes convenientemente nos acostumámos a fingir não ver. Não nestes momentos, em que a mudança é colocada para lá de qualquer dúvida. E se a partir de agora se começar a fazer assim? Começar a fazer de outro modo (?), eis a shakespeariana (e de modo tão útil usurpada e logo acomodada às nossas necessidades) questão: fazer ou não fazer?

Executar a ideia está por definição no ponto acima da(s) dificuldade(s) inerente(s) a essa implementação desde que a ideia seja válida. Desde que o utente, para o caso, após a implementação, possa sentir no processo um retroceder da tal dor infernal. É a responsabilidade de quem pensa e serve o outro abstracto, mas que sabemos sentir dor.

Validada, pois, a ideia, esta terá de descer numa derivação multíplice em que não só se exige a mudança, como também se tem de garantir que seja concretizada de modo análogo independentemente do local (obviamente garantida a especificidade de cada lugar). Que a forma de pensar e de fazer se ajuste à nova circunstância. Que se inabilite no gene desconfiado a suspeita perante o novo. Até, quem sabe, que se deixe para trás o pouco ou muito de nós que fez sempre da mesma forma, e passou a julgar que não havia outra forma.

No topo das preocupações, é claro, o utente, o utente petrificado pela dor que parece não querer passar. Sendo que o ‘retroceder da dor’ não alude ao analgésico. Refere-se a conforto. O conforto de quem sabe o que tem de fazer a seguir não estando nunca sozinho. Pois pior do que a agudez da dor é a solidão que invade o utente petrificado quando não sabe qual o caminho a tomar. Quando se olha ao espelho e percebe que não tem para onde ir.

(na imagem "O grito" de Munch)

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