16 Abril 2022      13:13

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O pescador e as ondas

Era uma vez um mar muito azul, que se prolongava de uma costa distante até ao lado de cá, onde se acreditava tão longe o lado de lá, como nesse lado achavam este. Duas visões e percepções distantes e idênticas. Neste lado, o mar era mais azul quando visto do céu. As tonalidades que o preenchiam transmitiam a ideia de paz e imensidão. A alma precisa tantas vezes de azul para se acalmar, da mesma forma que precisa de verde quando busca a esperança para se aconchegar.

O mar azul marinho, turquesa e bebé ao mesmo tempo pinta um quadro que não muitos conseguem admirar. As coisas que existem no nosso mundo devem ser admiradas, umas pela sua beleza evidente, outras por aquilo que está escondido atrás do seu aspeto robusto ou convencional. Até da pedra mais feia pode surgir uma peça de arte magnífica.

Isto mesmo pensava José, o pescador. Isolado no lado de cá do mar azul, naquilo que podemos chamar uma ilha quase deserta, vivia a sua vida entre o azul do mar e o verde da floresta plana. Entre os dois, uma linha de areia continua que se perdia de vista. Era, pensava o pescador, um quadro perfeito, mesmo sem ter visto nenhum. As únicas coisas que via diariamente era o mar, o verde, a areia, o barco e o seu fiel amigo, o cão, companheiro de todas as horas, sempre calado e bonacheirão, a olhar o dono de sobreaviso, caso alguém aparecesse de surpresa.

A relação do pescador com o mar era, porém, de uma admiração ambígua. Amava o azul e os corais e todas as coisas que, debaixo da fina camada de água superficial, se escondiam como se essa camada fosse um espelho e refletisse só o céu. José conhecia o outro lado do espelho e aquilo que ele deixava ver de si. Desse mesmo mundo viria o seu alimento.

Um elemento, porém, dificultava-lhe a vida e a sua relação com o mar. Entre si e o azul estavam as ondas que chegavam à areia e tantas vezes o impediam de chegar ao espelho mais azul e trazer consigo o alimento desejado.

Nesses dias, em que as ondas pareciam mais próximas, mais brancas na sua espuma e se engrandeciam mais, mostrando o peito, desvanecendo depois na areia, era impossível chegar ao mar e planar no espelho azul. Nesses dias, apenas o verde dava a esperança de alimento. Enquanto José olhava o mar, na esperança que o vento parasse de enfurecer as ondas e sussurrar ao ouvido do pescador histórias aterradoras, o seu fiel companheiro olhava o mar através de José, calado e bonacheirão.

A relação de José com as ondas tinha, assim, os seus dias, um pouco como a nossa relação com tudo aquilo que nos rodeia. Na sua rotina acabava por não haver muita novidade. Tinha-se habituado a ela, e passou a fazer parte da mesma, ainda que não o pensasse.

O quadro era durante o dia, o mar azul, a floresta verde, a areia em linha, o pescador olhando o mar, as ondas, o barco e o fiel companheiro. E, no dia seguinte, os mesmos elementos que compunham essa aguarela. Um por um, perfeitamente alinhados.