Na semana passada, falamos sobre a insistência. Não sei exatamente porquê, decidi insistir num tema que muita gente poderá insistir. A insistência da semana passada, como qualquer insistência só deve ir até ao momento certo da sua existência. Prefixos diferentes mas raízes iguais. É tão curiosa a língua portuguesa.
Curiosa e diversa. Diversa e filha de várias origens, como a árabe! E isto leva-nos ao momento seguinte deste texto.
Imaginemos que estava a escrever esta crónica antes de dormir, na cidade de Silves e que ia falar-vos da língua portuguesa. Tudo a acontecer no momento antes de dormir. Aquele momento em que preparamos os sonhos para o dia seguinte e aquele momento em que fazemos uma revisão de tudo o que aconteceu durante o dia que se encerra nesse momento.
No momento antes de dormir, será importante pensar naquilo que falamos e naquilo que ouvimos neste dia. Por acaso escrevo numa sexta feira, falamos do tempo, do fim de semana, das coisas importantes que fizemos durante a semana e, claro, daquelas que nos esperam no fim de semana.
O momento antes de dormir é um momento de reflexão. Uma ocasião em que os pensamento substituem as palavras - se não tivermos ninguém com quem falar - mas não substituem o pensamento que usa as palavras na sua forma gasosa, se preferirem.
Em Silves, se eu lá estivesse, tantas palavras e tantas ideias, cheiros e sabores me assaltariam, ao ponto de não me deixar dormir. Já alguma vez sentiram aquele cheiro da flor da laranjeira? Aquele travo que gera, depois, a laranja da baía e esse suco que é o famoso sumo de laranja? Silves é um concelho que vai da serra ao mar. Tanto se come uma açorda ou migas no frio da serra, cozinhadas em fogo a lenha com madeira de estevas, como se grelha um peixe apanhado por um pescador ou se cozinha uma cataplana que combina todos os sabores da serra e do mar.
A acompanhar um medronho, e uma tarde de alfarroba. Todos estes são pensamentos que, estivera eu em Silves hoje, pensaria nos momentos antes de dormir. As retrospectivas do passado ajudam a construir o futuro.
E, falando em Silves, não poderia esquecer o passado, a riqueza que ainda hoje a bela cidade preserva, de uma cultura árabe e tão lusa… as palavras, os gestos. Tanto, tanto que no momento em que adormeço, como se estivesse em Silves, as últimas palavras e os últimos ecos que quero ouvir e, principalmente, façam parte dos meus sonhos esta noite sejam das palavras de Al-Mutamid:
Eia, Abú Bacre, saúda os meus lares em Silves e pergunta-lhes se, como penso, ainda se recordam de mim.
Saúda o Palácio das Varandas da parte de um donzel que sente perpétua saudade daquele alcácer.
Ali moravam guerreiros como leões e brancas
gazelas. E em que belas selvas e em que belos covis!
Quantas noites passei divertindo-me à sua sombra com mulheres de cadeiras opulentas e talhe fatigado
Brancas e morenas que produziam na minha alma o efeito das espadas refulgentes e das lanças obscuras!
Quantas noites passei deliciosamente junto a um recôncavo do rio com uma donzela cuja pulseira rivalizava com a curva da corrente!
O tempo passava e ela servia-me o vinho do seu olhar e outras vezes o do seu vaso e outras o da sua boca.
As cordas do seu alaúde feridas pelo plectro estremeciam-me como se ouvisse a melodia das espadas nos tendões do colo inimigo.
Ao retirar o seu manto, descobriu o talhe, florescente ramo de salgueiro, como se abre o botão para mostrar a flor.
Mohâmede Ibne Abade Almutâmide - Rei Poeta - Beja (1040-1095)
E nisto adormeço, esperando acordar na mesma cidade, Silves.