3 Março 2018      12:17

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O lencinho

Assoava-se com ele. Tinha um lencinho que andava sempre no bolso. O lencinho era todo branco e tinha, num dos cantos, uma letra gravada. A letra A estava gravada em tons de azul, como gostava a dona do lencinho. Não é comum haver uma relação tão íntima entre um lenço e a sua dona, mas esta era. Tão próximos eram a dona e o seu lenço que a primeira dormia com o segundo e só se separava dele quando o punha a lavar. Isso acontece com regular frequência. Aconteceu assim, durante tempos e tempos seguidos, até ao último dia antes do desaparecimento do lencinho.

Um dia, quando o vento mal bulia, não, não era assim que queria começar. De novo, um dia, quando o vento estava forte, muito forte, o lencinho desapareceu. O seu desaparecimento, ao contrário do que possa pensar, não tinha nada a ver com o vento. Foi roubado. Isso mesmo que está a ouvir, ou melhor, a ler. Foi roubado, surripiado, levado por alguém com más intenções, um cleptomaníaco, um louco que não conhecia certamente a relação entre a dona e o lencinho. Soubesse a criatura que lenços brancos já fizeram a paz, já limparam as lágrimas de quem sofreu Soubesse a criatura que os lenços brancos foram feitos para terem uma relação privilegiada com uma só pessoa e não serem levados dela. Soubesse a criatura, não teria roubado o lencinho branco. Ou talvez tivesse porque isto há maldade em todo o lado. Dir-lhe-á qualquer pessoa que disto sabe. Os mais antigos sabem-no ainda melhor.

Hoje em dia, os lenços foram substituídos por lenços de papel. Não é a mesma coisa. Nunca será. Parece que tudo é descartável. Parece que tudo é passageiro e parece que nada nos acompanha. Com lenços de papel não se faria a paz, não haveria rendições. Talvez houvesse. Mas não seria a mesma coisa. Os lenços de papel deterioram-se com as chuvas e com as lágrimas.

A dona do lenço, deixem-me tratá-la assim, para não individualizar e não expor a sua identidade, arrastava-se no porto de embarque dos barcos que vão para longe e que alguns não voltam mais. Vestido longo, bem trajada, chapéu de aba grande, em palha e com uma rosa a enfeitar. A cara também rosada, talvez com blush modesto, andava a senhora, belíssima, a dona do lencinho, a procurar o barco que ia para longe e não se conhecia o destino.

Ali em frente, o barco. Lá estava ele, grande, velas caídas, prontas a zarpar. A dona do lenço não ia sozinha. Acompanhava-a a dama de companhia. Ia ter com o seu amor. Isto, se quisesse duplicar a intriga, dir-vos-ia algo que só eu sei. A dama de companhia estava apaixonadíssima pelo amor da dona do lenço. Não fazia concorrência, coitada, não podia.

Paradas as duas, frente ao barco, olhavam para a escada que levava e trazia pessoas da embarcação e esperavam ansiosamente. Uma não escondia, a outra tentava disfarçar. A dona do lenço usava-o para limpar as gotas de suor que borravam a pintura e, esperava, usaria para secar as lágrimas. A dama de companhia não tinha lenço e olha a outra com desdém. Não porque não tivesse afeição à dona do lenço, mas porque estava apaixonada pelo marinheiro que a dona do lenço amava também. O marinheiro, se querem que vos diga, não sei quem amava. Dizia ele que era a senhora, mas o olhar de desejo que lançava à dama de companhia, cada vez que a via, deixa-me a pensar.

O calor que se fazia sentir tornava-se cada vez pior e a face rosada já parecia mais um quadro abstrato de arte moderna, em tons de vermelho e cinzento. A dona desesperava. A dama que segurava a sombrinha, à francesa estava mais ou menos na mesma.

Nisto e para não fazer esperar mais, uma vez que o calor não ajuda e a crónica tem um limite, imposto por mim, lá desce o homem. Era capitão e maniento. Vinha com pose de quem vai para a guerra, quando no fundo ia à pesca de atum. Era marinha mercante e não de guerra. Ele não percebia e também ninguém teve possibilidade de lhe dizer. Não serei eu a fazê-lo.

Ora, a donzela, bela e acalorada, despedia-se e chorava, limpando com o lenço que usava. O lencinho branco com o A escrito em azul. Não se sabia ainda mas a razão pela qual não se apartava do lenço era a de que lhe tinha sido oferecido por este galã, da última vez que se despediram. Mas uma temporada no mar… E ela guardava o lenço como se fosse a memória do homem por quem se apaixonara. A dama olhava de soslaio e pensava coisas que não posso escrever.

Lágrimas caíam e eram apanhadas, com o lenço pelo capitão. A dama olhava e era um quadro triste mas perfeito. Não merecia ser desfeito. Nisto, o homem beija o lenço, apanha um pouco do seu ADN (incluído no suor) e põe no bolso da dama. Era o quadro perfeito. Não fosse o lenço, naquela confusão, ter sido roubado. Num momento de desatenção, já partido o capitão, desapareceu o lenço e nunca mais se viu. A donzela chorava, agora pela partida e pelo roubo. Nunca ninguém viu nada, nem ninguém sabe o que aconteceu. Bem, ninguém a não ser eu e a dama.

 

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