24 Abril 2016      10:23

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O GRANDE IRMÃO

"INCONSTÂNCIAS"

Vivemos uma era deveras caricata. Digo caricata porque me falta adjectivo mais adequado se é que existe algum adjectivo que consiga expressar a contrariedade excessiva da era que vivemos.

Sempre fui aluna de História e era com alguma piada que observava a forma como a história se repetia em círculos contínuos e, gradualmente, mais apertados. Apertados porque cada vez com menos espaço, apertados porque as situações passadas tornavam-se, quanto mais vividas e mais passadas, perto de ridículas. É com espanto que hoje noto que é em círculos que escolhemos continuar a caminhar – cada vez mais apertados.

Numa época em que achamos ter a liberdade de opinião é engraçado que muitos não tenham sequer a liberdade de pensamento. Aqueles que outrora ripostaram que a liberdade de pensamento seria a única coisa que nunca lhes poderiam roubar estavam enganados – ela está aqui, vive aqui, entre nós, mas usando a falsa liberdade de opinião de que tanto falamos e que tanto gostamos de dizer nossa. Mas, ainda assim, o que me provoca profundo choque é a nossa vontade de, voluntariamente, abdicarmos dela, ainda que falsa. De ter, em si, o direito. – Talvez nem nos apercebamos realmente. É possível que nunca nos apercebamos realmente do quão prisioneiros somos pois que a nossa prisão tem os contornos do conforto e do comodismo. Tem uma resolução demasiado grande e brilhante em termos de engrenagens para que consigamos fazer alguma coisa. A nossa prisão tem a qualidade deliberada de nos proteger – ou de clamar fazê-lo. A questão é, portanto, vivemos numa prisão ou vivemos porque é uma prisão? Queremos a liberdade ou a sensação de ter a liberdade?

Sei bem, caro leitor, que estou a remexer em assuntos um tanto ou quanto complicados e obtusos – vivem na esfera imaginária dos conceitos, vivem em palavra e por isso são batoteiros. Nós somos batoteiros com eles; dizemos: “Sim, sim, sei o que é”; “Sim, sim, acredito nesse conceito”; “Sim, sim, acho que está correcto”, e deixamo-los á deriva no mar de outros conceitos que nos passam ao lado, suficientemente ao lado, convenientemente ao lado e nunca paramos para pensar nas medidas que nascem desses conceitos. – Acredito que seja o primeiro problema nesta questão de duplos sentidos, não pensarmos nas medidas que nascem dos conceitos que nos passam ao lado. É que, quando se trata de determinar fisicamente um conceito, institucionalmente um conceito, não existe apenas uma forma de olhar para ele: existem duas ou até mais. E, irremediavelmente, por cada coisa que se pede perde-se outra: quando pedimos a segurança devemos estar prontos para perder a nossa liberdade. Sim, talvez não seja assim que nós, comuns mortais que “pouco podem fazer” pensamos, mas é assim, desta forma diminuída, que os nossos governantes pensam – mesmo que o não digam ou isso não transpareça nos seus bonitos discursos de defesa da população. Defesa contra algo que foi criado para que existisse algo de que precisássemos de ser protegidos.

Perdi conta aos momentos de conversa amigável em que me chamaram alienada por expressar essa opinião. A verdade é que nunca serei a primeira e se for a última acredito que corramos um extremo perigo, no entanto, o rótulo continua a ser-me colocado porque faço ligações “rebuscadas”, dizem-me. Não me importa muito, caro leitor. O que me importa realmente é que exista um pensamento livre. Não me importa muito, caro leitor, se vai concordar ou discordar de mim – importa-me que se importe o suficiente para me questionar com curiosidade e não com descrença. Afinal vivemos num mundo em que a única verdade é a verdade da perspectiva.

Foi apenas recentemente, no entanto, que pude ter a noção da razão que tinha. Ao assistir ao documentário “Citizen Four” vi surgir-me na memória essas conversas amigáveis e a urgência de as resgatar, não para me redimir aos olhos dos outros, mas porque precisamos de estar atentos áquilo que ninguém nos diz. – É a urgência maior. A urgência maior é prestar atenção ao que não é dito, ao que nunca está presente nos belos e fantasioso discursos, ao que não sai nas notícias, ao que os governos viram a face. Porque essa face virada pode ser a face da acção real e não a face da acção que é feita para nos manter no estado de dormência em que já estamos.

Nesse mesmo documentário é falada a questão de Edward Snowden, figura que expôs os programas de espionagem Norte-Americanos de que nenhum cidadão tinha conhecimento. Nenhum. Nem dos Estados Unidos, nem da Europa, nem de outro lugar qualquer no nosso vasto globo. – Porquê? Porque não dá jeito nenhum quando os espionados sabem quem os está a espiar. No mesmo momento em que eu enviar este artigo, caro leitor, é possível que ele seja aberto e que as minhas palavras sejam lidas e assinaladas. Pense nisto.

Pense nos vários comentários que faz por dia nas redes sociais, nos vários e-mails que envia por dia, nas várias mensagens – pense no quanto a sua vida é passada on-line e reflicta se é livre quando é possível para órgãos de poder controlar e ter conhecimento das suas palavras. A privacidade morreu com a segurança (uma segurança também ela figurada e figurativa). A liberdade segue, entusiasta, o mesmo caminho e nós ficamos por aqui a meias mãos com conceitos que achamos sobrevoarem-nos, conceitos que achamos que outros vão saber por nós, mas que no fundo são apenas adequados por outros á noção de liberdade, fraternidade e igualdade que é necessária. Não para nós, para eles.

Os programas de espionagem que foram adoptados pelos Norte-Americanos, devo dizer-lhe, foram aceites com a desculpa de que eles seriam utilizados para impedir ataques terroristas. Foram estabelecidos após o 11 de Setembro, acontecimento que muitos ponderam não ter sido bem o que nos pareceu que foi. Será que o foi, realmente? Como é que podemos traçar uma linha entre possível terrorismo e não terrorismo? Não será a invasão de privacidade de cidadãos sem qualquer cadastro uma forma de terrorismo? Não será a invasão e destruição dos países dos outros, também, terrorismo? – Então, caro leitor, como dividir o nosso terrorismo do terrorismo deles? Como, na prática, apontar o dedo a um terrorista quando nós não somos melhores?

O grande irmão já começou e nenhum de nós está atento a essa realidade. Poucos de nós conhecem sequer o conceito de grande irmão para além do reality show que é apenas, em pequena escala, a ameaça que se estende sobre a nossa liberdade. E nós vamos pedindo segurança, fechar de fronteiras, o acto racista e xenófobo de achar que os outros devem arcar com as consequências do seu país sem sequer termos a mínima noção de que quanto mais segurança pedimos mais liberdade nos vai faltando. Abandonamos, conscientemente, aquilo que demoramos imenso tempo a conseguir, aquilo porque morreram tantas pessoas, aquilo que devia ser o nosso princípio base: a liberdade. De se ser quem é, de se dizer o que se acha, de se pensar sem limites nem barreiras. Sem medo. Porque o medo é a primeira estância da inactividade, da paralisia, a primeira fase para que de seguida imploremos pela segurança. Hoje utilizamos o terrorismo como desculpa, ontem usamos o medo da diferença da cor de pele, o medo da diferença religiosa, o medo da diferença política. Amanhã eles lembrar-se-ão de outra nova desculpa para nos levar a questionar se queremos realmente a liberdade.

Em 1994, David Rockeffeler declarava “tudo o que precisamos é de uma grande crise e as nações aceitarão a Nova Ordem Mundial”. Estas palavras proferidas quando eu tinha um ano de idade, caro leitor, surgem-me na cabeça como fantasma quando, a cada momento, o nosso mundo caminha para o abismo novamente. Abismo de conceitos morais e éticos que achamos não precisar de conhecer. Abismo suportado por todos nós quando abdicamos do nosso direito de ser livres para pensar, para questionar, para olhar duas vezes para a mesma situação e pôr questões que não dão jeito nenhum ser postas. A maneira como nos oferecem o mundo hoje deixa-nos demasiado embevecidos pelas inúmeras formas de distracção disponíveis: eles não nos querem alerta. Como numa ditadura também ninguém nos quer alerta. Mas quando não sabemos que vivemos numa ditadura como lutar contra essa ditadura? Quando achamos que estamos em segurança, como reparar que não temos liberdade?

O raciocínio é o mesmo, a história é que vai mudando consoante a necessidade. O grande irmão é a ditadura de que falava Aldous Huxley – a mais perfeita forma de ditadura pois aparenta ser uma democracia para que os seus prisioneiros não sonhassem sequer em fugir pois os muros da prisão são transparentes porque o divertimento nos distancia de reparar neles.

Consegue, caro leitor, reparar nesses muros? – Tal como George Orwell, também eu lhe digo hoje “Se a liberdade significa alguma coisa, ela significa ter o direito de dizer às pessoas aquilo que as pessoas não querem ver”.

 

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