13 Agosto 2016      10:25

Está aqui

O GELADO

"PARALELO 39N"

Ice cream… I scream… Era um dia daqueles tão quentes mas tão quentes que até as Fénix depois de congeladas entravam em combustão, fechada dentro de uma arca congeladora, onde o gelo evaporava com o calor, tudo derretia. Apetecia-me tanto um gelado fresquinho, um mesmo uma garrafa de água. Vou a caminhar, debaixo de uma torreira de quarenta e tal graus, tenho gotas de suor a cair pelo corpo, as minhas miragens transformam-se todas em gelados fresquinhos de uma qualquer marca que não menciono para não fazer publicidade, mas apetece-me um ice cream ou uma garrafa de água fresca. Com este pensamento, caminho a longa estrada ladeada de eucaliptos e penso no sabor de uma garrafa de água gelada… pelo meu rosto escorrem-me gotas de água salgada e desidrato. Fico sem forças. E um ice cream, um geladinho gelado. A marca não interessa.

Ouço uma voz que me diz – Olá! Olá! A voz marca. Olho para o lado e está uma mulher grávida de oito meses, sentada numa cadeira, já com dificuldades em andar e caminhar comigo. O bebé pode nascer a qualquer momento, penso, e não sei o que fazer. Atrapalho-me mais e continuo a caminhar, com ela ao meu lado. Caminharemos assim muitos anos, nesta e noutras realidades matrix. Na sua versão do mundo, é noite e a mulher não sofre com o calor como eu. Eu grito, I scream… assusto-me e assusto as árvores, o calor e as nuvens que desaparecem todos. A mulher fala-me como se não notasse a diferença das nossas duas realidades. Fico cada vez mais vermelho na cara e olho-a. Torno-me intensamente rubro e as gotas de suor misturam-se com uma sensação de impotência, de impossibilidade, de inevitabilidade das coisas e sinto a necessidade de comprar os gelados, agora mais do que nunca.

Abano a cabeça e, depois de pedir à mulher que se sente debaixo do eucalipto mais antigo da estrada, enquanto procuro o pedido que me fez, corro debaixo do calor que a cada minuto mais me assola e penso nas diferenças que somos todos. Ela, na noite, à espera de um desejo que lhe é provocado pela gravidez, ela a minha companhia de vida que não reconheço no meio do calor. O calor transforma o ser humano, como os transforma o frio. Não tenho frio. Na minha realidade, o calor é insuportável. Na realidade da minha visão, dos meus pensamentos, um caminho assim, tenebroso, é suportável. Na realidade da mulher a noite prolonga-se, são nove meses que trarão a luz e os desejos acumulam-se. A mulher deseja um gelado fresco, uma mão cheia de cerejas, o bebé na barriga, em gestação, pede à mulher que lhe dê um gelado.

Corro na estrada e encontro o quiosque que vende gelados. Atrás da pequena janela do balcão só têm sorvetes à venda, sabores de lima e limão. Compro. Não me importo de despender o dinheiro que me pedem e acho absurdo. O amor e a dedicação fazem-me não pensar em contenção de fundos. Continuo a correr esperando que os sorvetes não se transformem em água antes de chegar ao eucalipto mais velho e que vejo ao fundo. À minha espera estavam já duas pessoas, uma mulher e um rapaz de oito anos. Levei muito tempo? Talvez… mas é só um sonho…  Voltei a ver a mesma mulher, a minha mulher, a que tinha deixado à minha espera antes da corrida, antes das miragens, depois do calor, do suor a escorrer e do regresso com os gelados na mão.

Vislumbrei-os. O menino chorava e a mulher acalmava-o. Pedia um gelado. Ela esperava que eu lho levasse. Contava comigo e eu contava com eles. O menino e a sua mãe queriam um gelado, Olá, disse eu! O menino olhou-me e disse-me, Pai, Hagen Dazs? E eu respondi-lhe que não. Sorvete, meu filho. Na vida, nem sempre os nossos desejos se tornam realidade e, na impossibilidade de alcançar o que queremos, devemos reajustar as nossas opções e, já agora, é melhor que te despaches a comer esse, antes que se derreta.

Acorda… Acorda… vou parar aqui para comprar um gelado, disse-me a minha mulher, sentada a meu lado, ambos dentro do carro onde estávamos que, com o pesadelo, já me esquecera que existia. Que pesadelo, disse-lhe eu, contando-lhe a história. Ela sorriu e disse-me, tudo tem uma explicação. Os nossos gémeos estão a dar pontapés e parece-me que querem um gelado, amor. Sorrio e penso que nem os sonhos fogem da nossa realidade.

 

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