3 Janeiro 2016      10:37

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O FEMINISMO NÃO É PARA PRINCESAS

INCONSTÂNCIAS

Desde pequena que o fascínio pelos filmes da Disney foi grande mas, devo confessar, como se não me bastasse já ser a “esquisita” do grupo de amigas da escola primária, eu era também a “esquisita” que gostava das guerreiras da Disney contrariamente às princesas. Antes, talvez me incomodasse que todas preferissem os vestidos e as danças suaves às armas e aos atos incontornáveis de valentia que observava fascinada onde as outras meninas só conseguiam ver, um tanto ou quanto enojadas, uma semelhança com o homem; hoje abraço esse gosto e essa particularidade com demorado apreço e grande compreensão, não fossem os filmes da Disney ainda melhores e mensageiros mais claros agora que percebo quão perfeitas as mimesis podem ser.

Isto tudo, caro leitor, para lhe dizer: não tenho qualquer tipo de apreço por princesas e prefiro manter-me longe delas. Isto porque se a Mulan é uma mimesis da mulher feminista a Branca de Neve ou a Bela adormecida são uma mimesis perfeita das feministas de bolso. – Feministas de bolso! Sim, é isso de que vamos falar hoje. Porque, devo ser franca, nunca suportei as suas manias extravasadas e inúteis propagandas e esta nova lei dos piropos obrigou-me a relembrar a minha pouca capacidade de complacência. – Já deve ter compreendido, leitor, eu sou daquele tipo de mulheres insuportáveis que levanta os punhos quando acha que os deve levantar sem medo ou paciência para demagogias do século passado. Sem mordomias ou regras de etiqueta insufladas e incompreendidas: no meu mundo tem que existir uma razão e uma justificação. Essa justificação tem, também, que ser suficientemente boa.

A Mulan sempre foi a minha favorita. Admirava a forma como a sua rebeldia se sobrepunha aos conceitos que lhe impunham como se estes tivessem escritos em alguma lei sagrada acerca do futuro: tens que ser isto, tens que fazer aquilo, deves agir assim, deves sorrir assado! Sentia, ainda hoje sinto, todo o meu corpo tremer e o coração na boca quando ela decide que pode e vai ser, em termos de força e treino, como um homem. Ela acreditou – creio ser a parte principal- encheu o peito e lutou pelo que acreditava.

Claro que isto é muito mais simples de se ver quando é um filme de animação. A verdade é que quando se passa na realidade, nesta dimensão em que as consequências são mais duradouras e as opressões mais cruéis a mimesis realizada não chega aos calcanhares do que é o sofrimento real das mulheres a quem dizem que não podem ser como os homens. Existe ainda, na nossa sociedade, uma ideia demasiado negativa e errónea do que é o feminismo; seja pelos homens que o temem seja pelas princesinhas da nossa época que ainda o confundem. Princesinhas, sim. Porque mulheres saberiam para onde dirigir a sua força e o seu punho do que para míseros caprichos de catarse de uma frustração pessoal como o foi o ataque a uma barbearia que, por piada, dizia na porta que a entrada era proibida a mulheres. O que mais interessante me pareceu foi que foram jovens e não pessoas que sofreram na pele as agruras da misoginia. Da misoginia pura e dura senhoras e não de meros piropos.

Mulheres que não tinham voz. Mulheres que eram meros adereços de uma casa bem organizada, de uma família que em tudo era família menos nos valores, que eram mulheres de um homem para procriação e recetáculo das suas raivas alheias e disputas másculas (ou nem tão másculas). Mulheres que morreram às mãos de uma religião patriarcal, que desde o início foram marcadas como sendo a personificação de pecado, um pecado que não era mais que as fraquezas mesquinhas e a falta de vergonha na cara de um clero inteiro, todo composto por homens. Coincidência?

O feminismo não é para princesas. O feminismo nunca foi para princesas. É bonito ser-se princesa em casa na proteção de um trono, de um pai ou de um irmão, mas cá fora o mundo nunca foi feito por princesas nem para princesas. As mulheres que lutaram pelas mulheres não se concentraram nas suas manias ou nos seus desejos de tratamento real, como muitas ainda e indiretamente (ou assim elas o acham) reivindicam, mas nos problemas reais que as renegavam para o lugar de máquina de procriação, de objeto de trazer por casa, de fada do lar que de fada nada tinha mas de escrava tinha tudo. E não falo apenas das injúrias contra o corpo ou a dignidade, reparem, falo também das pressões psicológicas, dos danos morais que ultrapassavam qualquer “és pouco boa és” e que rondavam o denegrir das capacidades da mulher enquanto ser mais do que mulher. Falo da proibição de participar na vida política e social, falo no escárnio que uma mulher sofria sempre que se mostrava inteligente e forte. – A mulher era apenas a fragilidade com pernas. Uma mente vazia num corpo dado a histerismos e paixões supérfluas, a crimes morais hediondos. Consegue, leitor, imaginar o que foi mudar uma mentalidade destas? Numa altura dada a crimes sociais onde estes eram encarados como naturais?

Não pode ter sido fácil. Não foi fácil.

Falava com uma amiga acerca desta lei faz uns dias, lei que ela defendeu avidamente argumentado que algumas mulheres não têm coragem ou não se sentem á vontade para responder torto ou ignorar simplesmente os piropos e as provocações. Perguntei a mim mesma que teria sido de nós se as sufragistas que se rebelaram para que hoje pudéssemos votar fossem algumas dessas mulheres. Percebi que o problema começa também aí: não são só os homens que olham para nós como seres frágeis, não é só a sociedade, somos também nós mesmas.

Somos também nós mesmas que assumimos essa fragilidade, quais ovelhas bem mandadas que nem quando postas de fronte ao seu carniceiro conseguem revoltar-se contra aquilo que assumiram. Somos também nós que recebemos de braços abertos e fraternamente essa qualificação do género a categoria humana banhada em cor-de-rosa suave e uma voz adocicada e mansa. Somos também nós que não dizemos chega! Não mandamos umas quantas alhadas e não somos capazes de nos despegar dessas ideias pré-concebidas ainda do tempo das personagens de Adão e Eva, não compreendendo que são meras personagens criadas pelo homem e por isso frutos da imaginação de alguém. Alguém que podia, muito bem, ser adverso ao papel da mulher e á sua capacitação! E assim, incorporando Eva e a Nossa Senhora de Fátima, imaculadas e ternas, baixamos a cabeça a tudo…a tudo menos a piropos! Podemos não lutar pelas mulheres que sofrem violência doméstica, podemos não lutar pelas mulheres que sofrem violência psicológica, podemos não lutar para que as mulheres tenham um salário digno, fiel ao trabalho que produz, mas que raio! Pelo menos lutamos pela proibição do inofensivo piropo.

E não, caro leitor, escusa de me vir falar de perseguição, assédio sexual explícito e contínuo, de interferência física pois para tudo isso já existe uma lei. Para tudo isso deviam existir também as pessoas a que isso assistem que se não tomarem uma atitude de auxílio são tão úteis e moralmente seletas quanto a lei do piropo.

Sim, porque um piropo, minhas senhoras, pode ignorar-se. Imaginem que vão na rua e que outra senhora as aborda e as ofende. – Ficam também vazias de autoestima, extremamente traumatizadas e assustadas? Não, porque não conhecem a senhora e portanto ignoram. Qual é a dificuldade em fazê-lo com um homem? Serão também vocês assim tão sexistas que assumam que existe uma enorme diferença entre ser ofendida por um homem ou uma mulher? Ou serão apenas…feministas de bolso? Deve pensar para si agora, pouco me importam as suas teses e os seus mas, com todo o respeito. Aquilo que podemos fazer hoje não foi construído de” mas” e sim de “é agora”. Só isto deveria chegar para acalmar o burburinho daquilo a que os humoristas chamam as “virgens ofendidas”.

Porquê, então, a concentração obsessiva nesta lei quando existem tantas leis muito mais importantes no momento? Porquê o sentimento de segurança e infabilidade para com uma lei que vai ser, se não impossível, muito difícil de aplicar? – Atrevo-me a dizer que seja porque ainda não compreendemos, para nós mesmas, que não necessitamos dessa carga soberba de feminidade (que por acaso, ou não, se traduz por “fraqueza feminil; moleza”),porque continuamos a encarar-nos como princesas que vieram ao mundo para sorrir a todos e acenar a uns quantos. Para ser sublime e gentil, leve e efeminada. Nas palavras do dicionário mole, fraca, delicada, afetada. – Não sei quanto a si, caro leitor, mas para mim todas estas palavras são apenas o desfile da opressão explícita de outras eras, disfarçada atualmente. E por muito que possa pensar que ainda são os homens que o preconizam, desengane-se, a culpa é hoje também de muitas mulheres. De muitas princesas.

A Mulan e a Brave, hoje, são as minhas favoritas. Desconfio que sempre o serão. Podem ter perdido todos os trejeitos reais e algumas mais-valias cómodas mas existiu algo que elas ganharam que muitas princesas perderam: a liberdade. A liberdade de ser mulher forte e capaz e perene e lutadora. Haverá liberdade melhor que essa?

Antes que sejamos feministas, sejamos mulheres. 

Imagem de capa daqui.