4 Setembro 2016      11:26

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O (EN) CANTO DAS SEREIAS EM PORTO COVO

"CIÊNCIA NA SUA VIDA"

Acontecia na praia da Samoqueira, em Porto Covo. Mesmo junto ao rochedo onde todos os anos nidificava um casal de cegonhas. Depois de mergulhar nas lagoas verde-esmeralda, que se formam na maré baixa, de brincar nas nascentes de água doce, que brotam das arribas, deixava a minha irmã mais velha e as amigas a adular o sol e ia para o meu sítio secreto. O canto da praia em que eu me transformava em sereia. Era uma rocha multicolor, com pequenas poças de água salgada, revestida por inúmeras espécies de seres vivos.

Para me transformar só precisava de uma cabeleira de algas. A minha escolha variava entre o castanho das laminárias e o verde escuro das Codium. Tinham era que ser compridas e volumosas.

Passava o tempo a cuidar do meu jardim de anémonas, zelava pela tranquilidade do sono dos pequenos ouriços-do-mar, estáticos nos seus berçários, procurava camarões e peixinhos debaixo das pedras que encontrava dentro das poças.

Quando apanhava uma estrela-do-mar levava-a para casa e secava-a ao sol.

Muito é o tempo que separa a minha infância da atualidade e muitos foram os anos que passei sem me transformar em sereia. No entanto, no verão passado, voltei ao mesmo sítio, com a minha filha e a magia tornou a acontecer: transformámo-nos as duas!...

Já não usamos laminárias para fazer as nossas cabeleiras pois estas algas têm desaparecido, ao longo dos últimos anos, da nossa costa. Escolhemos a Gelidium uma alga vermelha de onde é extraído o versátil agar agar. Também já não tenho a mesma visão quando olho para a rocha multicolor, revestida de inúmeras espécies…

Quando a minha filha rega o jardim de anémonas digo-lhe que aqueles seres vivos não são plantas, como parecem, mas animais que capturam as suas presas com pequenos arpões, impregnados em veneno, que lançam a partir dos seus tentáculos. Que a imobilidade dos ouriços-do-mar não significa que estejam a dormir… Estes animais passam o seu tempo de vida no mesmo sítio, alargando o buraco da rocha em que vivem, à medida que vão crescendo.

Mostro-lhe as minúsculas cracas que se juntam em colónias e formam o que parece ser uma grande cidade, com milhares de casas. Digo-lhe que as detestava quando era criança pois tornavam as rochas muito rugosas e magoavam-me os pés. Acrescento que agora as admiro por saber que são umas resistentes… resistem às múltiplas condições adversas que a vida entre marés lhes traz. Não é fácil passar metade do dia debaixo de água e a outra metade expostas ao ar. Para respirarem, quando estão emersas, estes animais têm que fechar a sua concha, composta por diversas placas calcárias para poderem conservar no seu interior alguma água da qual retiram o oxigénio que necessitam. Tal como os outros animais que vivem na zona entre-marés as pequenas cracas têm que resistir à força brutal das ondas que fustigam esta zona. A adaptação à variação da salinidade da água é também essencial a todos os seres que aí vivem pois quando a maré está baixa a água da chuva altera a quantidade de sais das poças de água.

Já não trago para casa as estrelas-do-mar.  Prefiro deixá-las bem vivas no local a que pertencem para poder observar as suas peculiaridades. Estes animais carnívoros conseguem, com os seus braços abrir conchas de bivalves (mexilhões, ostras) e projetando o seu estômago para o exterior, digerem a sua presa fora do corpo. Ingerem os animais capturados depois de digeridos.

Nas conversas que temos, no canto das sereias, não decifro tudo o que vemos, à Maria do Mar. Cedo uma margem para que a sua imaginação possa explicar o Mundo. Continuo, por exemplo, a deixar que pense que as estruturas arenosas edificadas por poliquetas, que constroem pequenos casulos semelhantes a favos de mel para se abrigarem, são colmeias. Ela explica-as supondo que existem abelhas marinhas…

Vejo-me, no futuro, a voltar ao canto das sereias… Provavelmente com as minhas netas. Transformar-nos-emos com certeza. Talvez com cabeleiras feitas de laminárias que já terão reaparecido na nossa costa.

A minha visão daquela rocha multicolor, coberta de inúmeros seres vivos, não será a mesma (a idade ajuda-nos a ver para além do óbvio)...

Irei mostrar-lhes as esponjas do mar, insuspeitos bichos, que, de tão simples que são, ninguém supõe que os seus esqueletos de espongina formam um animal.

Procuraremos cavalos-marinhos machos, grávidos, para que possa mostra-lhes como estes peixes são uma exceção num mundo em que as fêmeas asseguram a gestação das crias.

Nessas tardes do futuro, transformada em sereia, perpetuarei o eco do poema de Sophia de Mello Breyner Andresen, que canto e cantarei: “No fundo do mar há brancos pavores, onde as plantas são animais e os animais são flores …”

 

Fotografia de Debora Jorge daqui