29 Julho 2016      19:39

Está aqui

O CANTAR DO GALO

"PARALELO 39N"

Em Manhattan os galos não cantam nem às 4 nem às cinco da manhã. Não é por ser a cidade que nunca dorme, mas porque, parece-me, há poucos galos na cidade americana que vivam no meio daquela encruzilhada urbana. Jardins nos topos dos prédios há alguns, já os vi quando subi ao prédio mais alto da cidade. Vi, a partir do Rockefeller Center, alguns jardins no topo de edifícios mais baixos. Não vi, até hoje, nenhum galinheiro. Espero ainda ter essa surpresa. Espero ainda ouvir o som dos galos a despertar a cidade que não dorme. Embora isso seja, no fundo, um paradoxo. Sei-o. Não quero, porém, pensar muito nele.

Em Díli os galos cantavam. Não havia arranha-céus e nunca lá vi nenhum jardim no topo de um edifício com mais de doze andares. Os jardins, as plantas e as árvores espalhavam-se todas em volta dos edifícios. No mesmo paradoxo, a cidade dorme e os galos, esses, cantam a noite toda. Independentemente de um fuso horário regulamentado em que se possa dizer, como em Portugal que os galos devem cantar ao despertar do dia. Devem ser o nosso despertador natural, os galos de Díli contradizem todos os relógios naturais e cantam toda a noite, como se numa discoteca estivessem a dançar desenfreadamente.

Têm o seu encanto natural e do seu som, onde o silêncio invade os edifícios, recordo o barulho dos galos, a cantoria mal orquestrada e a simultaneidade das experiências de diferentes paralelos. Cada galo na sua cidade, poder-se-ia dizer, como se poderia dizer também que os fusos horários se podem trocar à vontade dos homens.

Hoje, dormindo e sonhando ouvir os galos, acordo às quatro e pouco da manhã, como quase todos os dias, ouvindo os galos cantarem. Talvez seja só no meu sonho. Talvez seja o barulho do comboio na linha ao lado de casa. Enquanto dormimos e sonhamos parece-nos sempre que aquilo que não é verdade, é verossímil. E os sonhos são verdade na longa noite, como também o cantar dos galos é verdade quando o imaginamos no nosso paralelo.

Na melodia enfadonha dos barulhos de uma cidade, ouvir um galo cantar é novidade. Aqui, onde estou, adormeço sabendo que o despertador me acordará ao som de uma melodia que escolhi. Aqui onde escrevo sei que os ruídos e as melodias da cidade são outras e aprecio-as por isso. Valorizo cada som, transformando-o em notas musicais mais ou menos afinadas. Lembro o cantar dos galos e as melodias, os sons e os ruídos do passado tão vivamente como se, aqui e agora, o apitar de um táxi amarelo, fosse um galo, não fosse a placa indicativa do táxi tão solene como uma crista. Só o olhar desconfiado do galo diverge das luzes frontais do mesmo táxi.

Não são comparáveis. Não o seriam nunca, ou seriam? Não podem os arranha-céus ser galhos, nem as cores dos prédios as mesmas flores onde os galos cantam. Talvez por nunca terem vindo a Nova Iorque os galos de todo o mundo não vejam essas semelhanças. Se galos houvesse em Nova Iorque, Manhattan seria um sítio onde se dormiria. Se os galos de Díli viessem a Nova Iorque saberiam a que horas cantar.

E eu, meio adormecido, saberia também que estes paradoxos que se imaginam e pensam são o ruído dos comboios e não os galos a esgravatar na terra ou a cantar melodias desafinadas como se fosse eu o próprio galo dentro do táxi e uma invenção dos meus sonhos, meio misturado no sono e nos barulhos frequentes da madrugada de uma cidade como esta, onde, da terra sai o fumo dos túneis do metro que por baixo passa e não o calor da terra como acontece nos invernos dos campos.  

 

Imagem daqui