19 Junho 2025      18:28

Está aqui

O bem dos outros

A pandemia da COVID-19 deixou, entre tantas marcas, uma lição clara: por mais que tentemos, não vivemos isolados, imunes ao que se passa ao nosso redor. Não somos ilhas. O bem-estar dos outros, até mesmo de completos desconhecidos, pode ter um impacto direto e brutal na nossa vida. Durante aquele período, as ações alheias determinavam se podíamos sair de casa, até que horas, que comércios estariam abertos e se seria obrigatório usar máscara. De forma inesperada, dependíamos uns dos outros para viver com alguma normalidade. Para quem já se esqueceu, a pandemia provou isto: a vida do outro importa.

E muito.

Mas, olhando para o presente, pergunto-me: aprendemos verdadeiramente essa lição?

Vivemos numa era profundamente individualista. O foco em nós próprios, no “eu” acima do “nós”, parece ter-se enraizado ainda mais no sistema em que vivemos. E há um novo elemento a pesar nesta equação: as redes sociais. Ainda numa fase relativamente inicial da sua existência, com apenas duas décadas de massificação, já demonstram efeitos visíveis e contraditórios. Por um lado, aproximam-nos de quem queremos; por outro, afastam-nos fisicamente e emocionalmente do mundo que nos rodeia. Tornaram-se vitrines do eu, onde impera a exposição, mas não necessariamente a conexão. Cultiva-se a individualidade, física, intelectual e até moral, a um ponto tal que a confrontação com o outro, o encontro com a diferença, se torna desconfortável ou evitável.

Este distanciamento do coletivo tem consequências. Reflete-se, por exemplo, na forma como nos envolvemos politicamente, ou como nos demitimos desse envolvimento. Se cada um vê o mundo apenas a partir de si, os outros tornam-se obstáculos ou irrelevantes. É uma visão empobrecida da vida em sociedade, onde a empatia cede lugar à indiferença.

No livro O Preço da Desigualdade, Joseph E. Stiglitz explica, de forma cristalina, o custo, para todos, de uma sociedade desigual. Não são apenas os pobres que sofrem; os ricos também pagam, de forma menos óbvia, mas real. O autor fala de "capital social": a confiança mútua que sustenta uma sociedade. Quando há garantias básicas, segurança, saúde, educação, trabalho digno, essa confiança floresce. Mas quando o sistema falha, instala-se a desconfiança e, com ela, a indiferença.

Perder essa confiança, esse capital social, é perder o chão comum que nos liga enquanto sociedade. E esse é talvez o maior risco que enfrentamos hoje: o de acharmos que podemos viver sozinhos, quando tudo nos prova o contrário.

É por isso que, mais do que nunca, precisamos reforçar, e não enfraquecer, os pilares do Estado Social. Precisamos de escolas públicas que não segreguem pelo código postal, mas que ofereçam igualdade de oportunidades a todas as crianças, independentemente do seu contexto. Precisamos de um Serviço Nacional de Saúde que trate primeiro as pessoas e só depois os números, onde a urgência do atendimento não dependa da carteira de quem entra pela porta.

Quando um sistema essencial apresenta falhas, como infelizmente acontece com frequência, a resposta não pode ser a sua privatização imediata, como se o problema fosse a sua natureza pública. A resposta responsável é o investimento, a reconstrução, a correção dos erros. Porque privatizar é muitas vezes entregar ao lucro aquilo que devia ser um direito. É desistir da ideia de que todos contam.

Construir é mais difícil do que destruir. Mas é também o que distingue uma sociedade que acredita no bem comum de uma que se resigna à lei do mais forte. Defender os serviços públicos é defender esse chão comum de que falava Stiglitz, a base de confiança que sustenta uma democracia viva e uma comunidade coesa.

No fim, o bem dos outros não é um gesto de altruísmo, é uma condição essencial para que a vida em sociedade exista. Quando deixamos de acreditar que o destino comum depende do cuidado mútuo, não estamos apenas a ser indiferentes; estamos a desfazer os laços que nos tornam comunidade. E nesse momento, deixamos de ser sociedade para sermos apenas indivíduos a caminhar lado a lado, sem rumo partilhado.