20 Março 2021      09:47

Está aqui

O achigã

O achigã nunca nadava de noite, só de manhã. O achigã quando se vestia, sempre fazia pandan. Nos dias que estava doente, chorava pela mamã, nos dias que estava de boa saúde ou feliz, comprava um talismã.

Era um peixe diferente, um ser social que conhecia muita gente. Na barragem onde vivia, não lhe importava o frio ou quente. Era um achigã paciente que esperava só comer uma refeição decente.

Certo dia, habituado a poesia, porque nas águas da ribeira era o que se fazia, decidiu escrever sobre uma cotovia. Viu a ave a passar em Atouguia. Queria logo saber para onde ia e dizer-lhe o que sentia.

Porém pássaro não entende peixe, nem percebe linguagem estranha. A cotovia não percebia barulheira tamanha. Voou dali para fora, que já estava na hora.

Achigã ficou desolado. A tristeza era tamanha do seu lado que decidiu nadar de noite sem ser acompanhado. Queria ir para um lugar isolado onde pudesse chorar o seu triste fado.

Aventurou-se no mundo que ficava la no fundo, escuro e profundo. Sozinho, nadando na lama, já imundo, sentiu-se cansado e ainda mais abandonado.

Cedo apareceu uma enguia que também lá vivia e compreendia o sentimento de abandono e isolamento, tentando ver se o conhecia e se mais sobre o assunto sabia. Era curiosa a enguia que junto a ele se via. Deslizando, como quem dança, a enguia tentou seduzir o achigã, lançou a trança e não perdeu a esperança de que aquele peixe fosse a sua mudança e a subida de estatuto que sonhava enquanto criança.

O achigã olhou a criatura e não demonstrou grande abertura. Parecia uma noite escura, bastante imatura e sem grande ternura. Não ficou apaixonado, nem sequer entusiasmado pela enguia como tinha ficado pela cotovia.

Todavia peixe não ama ave, embora ave ame peixe, mas na comida. Uma paixão que é uma refeição.

Melhor teria ficado com a enguia que faria o que ele queria. Mas não. Pensava que para a cotovia o amor dele chegava.

Um dia, muitos depois do primeiro, talvez no mês de janeiro, a cotovia voltou e o achigã de novo gritou! Gritou tão alto que pôs tudo em sobressalto. A cotovia olhou e viu, de repente, o reflexo do pretendente que, para ela era mais um presente.

Lançou-se ao lago com tal ira que nunca ninguém vira. Estrafegou o achigã como se não houvesse amanhã e acabou com uma bela história de amor. Depois do assassinato, nas águas vermelhas de dor, só se ouvia o clamor, a tristeza e o temor da enguia que gritava o que sofria.

O peixinho, que só nadava de manhã, se naquele fatídico momento tivesse tido outro pensamento, coitadinho, não teria gritado ao predador. Teria ficado calado e vivido o amor, em contenção sem se tornar a principal refeição.