3 Fevereiro 2018      11:50

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NUVENS

Andava com a cabeça nelas. Todos os dias. De um lado para o outro, a pensar nas nuvens. No meio delas, uma almofada fofa e onde se pode descansar. Era de descanso que precisava e nelas gostava de passar o tempo. Nas nuvens. Cabeça nas nuvens. Andava a divagar por elas quando saía de casa e caminhava nas ruas. Sentia-se o ar compactado.

Quando era criança, também andava com a cabeça nas nuvens, imaginava-as algodão doce e coisas assim. Cresci e as nuvens passaram a ganhar formas, a ser rebeldes, durante alguns anos. Assumiam, por vezes, tons diferentes, exuberantes, ameaçadores, monstruosos, suaves, calmos, pacíficos. Eram simples e a minha cabeça andava nelas.

No céu azul, quando o humor das mulheres e dos homens anda calmo como um mar sem ondas ou revolta, as nuvens que aparecem são sinónimo dos sonhos que se formam nos seus e nas suas cabeças. Olham-nas, brancas e suaves, e nelas veem tantas figuras quanto as que a sua imaginação pode criar. No céu azul, onde algumas nuvens, poucas, se passeavam.

Um dia, as nuvens verdadeiras tornaram-se cinzentas e o azul desapareceu atrás delas. Deixaram de existir no céu azul e tornaram-se em gelo, caídas pelo chão, prostradas e sem criarem animais dóceis ou ferozes no céu. O azul era cinzento e o mar não estava calmo nem azul. Deixei de sonhar com as nuvens que passeavam no céu. Fiquei em tumulto interior, visível no choro compulsivo, sem que saíssem lágrimas. Estas coisas do tempo afetam-nos, a nós e ao humor. Bem, a verdade é que cinzento, não podia ia buscar nada às nuvens nem criar nelas as expetativas de sonhos. Restava-me o quente da casa minúscula a que chamava lar.

Fiquei parado uns dias, no centro do pensamento e nada fervilhava no pensamento. Ao fundo, uma lareira que era um ecrã e não aquecia nada a não ser a minha ideia. Decidi que queria roubar as nuvens ao céu. Tirá-las da prisão cinzenta e tornar a tê-las na minha vida como o céu azul. Eram nuvens. Eu andava com a cabeça nelas. Todos os dias. E, nos dias em que não as via, tinha saudades dela.

Tomei uma decisão. Decidi. Ponderei. Pensei. Ilustrei o pensamento com imagens e rabisquei num quadro branco as ideias, a estratégia. Voltaria a ter as nuvens na minha cabeça. Andaria com a cabeça nelas outra vez. Todos os dias. Calcei as botas de neve, enrolei-me dentro do casaco quente de inverno, luvas calçadas, gorro e cachecol e saí da casa. Não era uma prisão mas parecia acorrentar-me ao soalho de madeira e às paredes nuas. As correntes eram invisíveis e o tempo não passava. Queria andar com a cabeça nas nuvens. Nelas. Todos os dias.

Entrei, gelado, na drogaria mais próxima, vigiado pelo céu cinzento e ameaçador que me olhava com ar trocista. As nuvens eram uma só compacta, temíveis como o Adamastor. Entrei e comprei duas latas de tinta de cinco litros cada. Duas latas cheias de tinta azul do céu. Aquele azul tão puro que já não aparecia e transportei-as a custo para casa, uma em cada braço, equilibrando o peso e as minhas emoções. As forças apareciam de longe e conheciam o sentido e o propósito de me ajudarem a levar o azul até casa. Pintaria todas as paredes como se fossem o céu azul límpido de um dia de Sol. Deixaria de haver cinzento a entrar pelas janelas e teria o azul no brilho do meu olhar. Queria sentir o céu ao meu redor e, já que não o poderia ver como dantes, seria no meu espaço que viveria.

Pintei a casa de azul e respirei ar fresco, algum tempo depois de a tinta secar e de as janelas terem permitido alguma respiração, claro. Faltava algo, ainda. O azul do céu estava incompleto. Queria andar com a cabeça nas nuvens, transformá-las em personagens de romances clássicos e dar-lhes vida em papel. Talvez faltassem as nuvens na sala. Não o elefante, esse dispensava. Corri à drogaria de novo e, após o ritual das botas e de todas as coisas que vesti, comprei uma sala cheia de algodão. Transportei às prestações e, ao contrário do que pensava, nunca me pareceu ter o céu tão perto. As nuvens tomaram as formas que desenhei com as minhas mãos e construí um universo novo.

Deixei de andar com a cabeça nas nuvens. Todo o meu corpo envolto no algodão. Passei a viver nelas.

 

Imagem de recreio.uol.com.br