9 Abril 2017      12:40

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A NOVA CARNE: CARNE LIBERTADA

"DESVIOS E RESPECTIVOS ATALHOS: FILMES, LIVROS E DISCOS"

Videodrome (1983), de David Cronenberg

 

David Cronenberg, canadiano de Toronto, demonstrou desde muito cedo um profundo interesse pelo binómio biologia/medicina, tendo iniciado os seus estudos superiores (algures) na área científica. Mais tarde, deu uma volta, depois outra, depois outra, girando sobre si próprio, e acabou por seguir literatura (em que se formou) pelo que, e deve-se dizer naturalmente, vive a personificação artística em directa relação com dois domínios: [a representação do corpo], que ele pretende crer ilimitada, e resumida num género de que Cronenberg se pode considerar percursor: o body horror ou o horror biológico ou, ainda, o horror orgânico; corpo que nos seus filmes gosta de fundir com o universo em volta em combinações mais ou menos lineares (a tal veia de médico e coca-bichinhos?). [e a sua expressão (mormente sexual)], sendo este segundo domínio de modo recorrente a ignição do primeiro. Seria redutor, no entanto, entender esta revelação na componente básica do prazer físico; é outra coisa, um elemento estranho ao corpo, viral, amiúde gerado na mente, espécie de mapa morfológico para os objectivos do cineasta (no tal corpo sem limites).

Videodrome insere-se nesta linha e é tanto mais importante porque nos leva para além dos caminhos já conhecidos e reconhecidos por quem lhe conhece o cinema anterior – mantém a continuidade, símbolo deste e de todos os autores, mas também, e pela primeira vez, já não concebe as suas criações como princípio de destruição – desponta o elemento criador. Ou melhor, da demolição do corpo (porque está lá) virá um novo ser cujo resultado não vale só pelo que foi aniquilado, mas acima de tudo pelo que foi destituído de lugar, (se quisermos, e dar-nos-emos a essa liberdade, podemos referir um processo evolutivo) – Dessa destituição virá um fruir, um recriar, e não uma noção de final abrupto depois do qual habitualmente nos sentimos, enquanto espectadores habituados aos códigos do horror, aliviados ou impelidos para fora da sala.

É possível, para melhor entendimento, mapear o cinema de Cronenberg da seguinte forma, a terminar no final no início deste século, época em que, presunçosos, determinamos ter sido o fim do autor:

Fase 1 (Até 1974): o Pré-Cineasta – Vive de dois grandes primeiros filmes, entre várias curtas e trabalhos para Televisão, de cuja análise resiste uma nuvem na qual, apesar de tudo, já se vislumbra a Ideia.

Fase 2 (1975-1978): O híbrido Médico-Cineasta experimenta – A fase de Shivers e Coma Profundo.

Fase 3 (1979 – 1983): O Cineasta evolui – Começa com A Ninhada e culmina precisamente com Videodrome.

Fase 4 (1983-2002): O Cineasta Total – Começa com Videodrome e termina com Spider.

Depressa se nota que Videodrome tem então a particularidade de pertencer a dois períodos distintos, excentricidade justificada pela razão de, enquanto filme-compêndio do realizador, nos poder cumular e resumir tudo sobre o passado do Autor, mas também sobre o seu futuro criativo. Já não observamos elementos distintivos, sinais, antes um apogeu que já não permite ascender, apenas sustentar uma linguagem, alimentar a desconformidade corporal quando é o caso, complementar se for necessário – Daqui para a frente o corpo fundir-se-á com objectos estranhos, com metal, com insectos; zonas mortas serão criadas na mente (como em Dead Zone – filme do mesmo ano que Videodrome), para que possam ser preenchidas com imagens do Futuro; o metal retorcido de acidentes de automóvel será a metáfora de um êxtase moderno, ou de tempos modernos, como em Crash (não menos interessante é verificar como a roda dentada mecânica onde Chaplin se perdia é agora pura desordem e caos de metal de onde não é menos difícil escapar).

Max Renn, James Woods tão perdido como gosta de estar e nós gostamos que ele esteja, gere um canal de pornografia por satélite e um dia dá de caras com um novo tipo de show, o Videodrome do título. Local de imagens delirantes, de sonhos molhados e pesadelos de estrutura orgânica; imagens que aparentam um plano: desconstruir Max, tomá-lo de assalto…

Em Videodrome temos, então, um vírus (neste caso televisivo) que se difunde do olhar para o corpo; sendo que o olhar é, portanto, sexual (não tão genital como em Naked Lunch, mas ainda assim…). Os elementos são por demais reconhecíveis.

Na narrativa, Max cedo se apercebe que Videodrome é diferente de tudo o visto por si antes – olhar julgado como experimentado – e movido por uma urgência produto da predisposição para o prazer (elemento primitivo na personagem Cronenberguiana) embarca numa experiência alucinante (assim o diz o título em português), onde começa por ser um mero peão para se tornar no primeiro de uma nova estirpe.

A Nova Carne: Carne Libertada: Carne extravagantemente libertada por efeito televisivo. Videodrome! Nos destroços do que era tido por alienação encontramos, por via catódica, a sublime libertação.

 

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