23 Julho 2017      09:38

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NEW QUEER, OLD FREEDOM: TRASH CINEMA

"DESVIOS E RESPECTIVOS ATALHOS: FILMES, LIVROS E DISCOS"

The Living End (1992), Um filme irresponsável de Gregg Araki

O New Queer Cinema foi (ainda existe?) um movimento artístico a que podemos desde logo associar três nomes: Tom Kalin, Todd Haynes e Gregg Araki. Na sequência lógica, podemos anexar três filmes aos três nomes: Swoon, para Kalin - Poison, para Haynes - The Living End, para Araki. Sem esforço, numa espécie de composição construtiva, ainda nos é possível ir buscar um outro nome e um outro filme, Gus van Sant e My Own Private Idaho. É reduzir ao mínimo, mas fiquemos por aqui. Os anos charneira foram os de 1991 e 1992.

Quanto a ideais charneira, para além do belíssimo e distintivo termo criado pelo académico e crítico americano B. Ruby Rich, que consegue o milagre de destacar algo novo de três coisas que não o eram de todo, homossexualidade, cinema e cinema homossexual por ordem cronológica, o que temos então? Relações gay explícitas e uma postura de confronto e antagonismo com a cultura heterossexual dominante: acabaram-se as desculpas, os jogos do gato e do rato, atitudes subservientes de medo e culpa.

Ruby Rich, num dos vários artigos que dedica ao movimento, fala sobre filmes “formalmente radicais e que pretendem representar imagens violentas de identidades sexuais que desafiam quer o status quo de uma sociedade heterossexualmente definida, quer” (imagine-se) “a visão positiva de gays e lésbicas conforme concebidos pelos movimentos de libertação gay dos anos setenta e oitenta”.

E, de facto, fixando o olhar nos três primeiros filmes mencionados - Swoon: revisitação homossexualmente explícita do famoso crime de Leopold e Loeb, ocorrido na década de vinte do século passado (o crime em que Hitchcock se baseou para o seu clássico de plano único, A Corda); Poison: filme em três partes independentes, vagamente inspirado no universo de Jean Genet, sendo que uma delas ocorre no feroz mundo de uma prisão, onde a humilhação de um prisioneiro sob os olhos de um potencial e futuro amante é o mote; The Living End: devaneio com o subtítulo de irresponsável e potencialmente homicida sobre uma viagem-fuga de dois amantes seropositivos.

Mais uma vez, o que temos? Narrativas dirigidas por gays e com protagonistas gays, mas apresentados como renegados, marginais fora do livro de regras das convenções sociais; e, não despiciendo, quase sempre porque esse é o caminho escolhido. Não é a sociedade que os torna marginais, são eles que se deliberam excluídos.

The Living End, expressão inquietante e bela que tanto pode significar ‘o ponto mais longínquo, mais extremo’, ou ‘algo de extraordinário’ - e que também é, como visto, o título de um filme que se autodenomina irresponsável. Nessa condição, pode ser simplesmente formulado nos termos anteriores, isto é, um filme que advoga uma libertação homossexual auto exclusiva sem, por isso, precisar de uma validação heterossexual? Sim, claro que sim. Mas há mais, Araki vai por exemplo ao extremo inferior da representação imagética – de alguma forma a revisitação do bom e velho trash cinema (veículo também de Warhol, por exemplo), o que nos outros filmes já mencionados não acontece.

Numa primeira abordagem, mais ou menos esquemática, o que retemos do cinema de Araki é a necessidade de ir directo ao assunto, de desagregar antes de conceber, de navegar num espaço aberto e ilimitado e portanto epistemologicamente livre, mas também uma simbologia de perda e de vazio. Araki quer desesperadamente mostrar (e mostrar aqui não exclui necessariamente a palavra, antes a abre e complementa), e não o pretende com delicadeza (refira-se que o filme seguinte do autor tem o sugestivo título de Totally Fucked Up, e o que segue ao seguinte The Doom Generation), os seus filmes nunca são recomendáveis, mas também nunca ou quase nunca são sérios, foge das regras e, como já referimos, encontra refúgio no trash-cinema.

E haverá algures uma necessidade, uma urgência, no cinema de Araki? Exponha-se algo do género, mostro-me gay ostensivo e torno-me natural. Certo, mas aos olhos de quem? Um pouco antes ainda: O cartão-de-visita da América é o individualismo, e não esta ou aquela América, mais ou menos grená, simplesmente a América. O indivíduo luta pelo objectivo, e luta contra tudo e contra todos, luta contra o governo que lhe pretende impor e luta até contra si próprio, daí a necessidade de armas (das quais ninguém verdadeiramente se liberta). Para poder sobreviver, como terra / pátria que também é um conceito, inventou um outro, o politicamente correto – a diluição da opinião firme até dela pouco mais restar que um corpo uniforme liquefeito (ainda que aparentemente coeso). Sem o politicamente correto não há sociedade assente no individualismo – sem contradição objectiva (mantém-se, no entanto, a contradição aparente). O que sucederia então à América na eventualidade do politicamente correto sair da equação? Aconteceria precisamente Araki. E Araki sabe disso. E é possível que a ínfima América que o conhece e rejeita saiba disso. E Araki sorri, porque apesar de tudo, o que verdadeiramente recusa é a perda de uma certa inocência assente no caos das revoluções imaginárias.

Demasiado simples? Talvez, é muito provável que sim.

 

Imagem de newqueercinema.org