6 Maio 2018      13:00

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The Neon Demon, de NWR

Nicolas Winding Refn não filma e mostra, dispara sobre o ecrã, e de um modo que à primeira vista não pode deixar de ser considerado como insuportável. Reflexo (nosso) de um modelo educativo frio e hirto e de uma pré-disposição constitutiva (outros, menos dados às ciências naturais, chamam-lhe cinismo finde-siècle) para a desconfiança. Olhar tísico? Nem tanto, autodefesa congénita.

Apreciação que antes fazia todo o sentido e agora de pouco importa, desde The Neon Demon.

NWR não tem o dom da palavra, e o próprio parece tê-lo finalmente reconhecido. Na verdade, era o passo que lhe faltava dar. Filmes como Bronson e, em certa medida, Drive não eram apenas falhados, eram anómalos, desfasados da proposta do autor (que, apesar de tudo, se pressentia). O primeiro demasiado palavroso, e apenas estupidamente amaneirado (e, no entanto, como se lhe viria a ser útil a afectação), o segundo, supostamente classicista, e afinal apenas lacunar. Já Only God Forgives tinha e tem inúmeros defeitos – NOTA: NWR tem esta extraordinária particularidade, aqui com o traço severo do inevitável: ou é iniciático ou não é nada, e como se expõe sem reservas, todos os defeitos estão à vista por definição –, porém como foi uma séria (sinónimo: honesta) tentativa de criação de uma mitologia prévia à linguagem autoral, onde esta assentaria, o tiro não falhou o alvo por muito (falamos em anos-luz, é óbvio, nada que impressione quando se pretende o Universo).

E o que torna The Neon Demon diferente? É um filme de alguém que finalmente se assume. Sem reservas.

NWR tem um único caminho à sua frente, percurso estritamente pictórico. Relaciona-se connosco (através de imagens belas, artificiais, iconográficas, instintivas, extremadas, grotescas, também pungentes, totais) do mesmo modo que a pintura se relaciona com os seus observadores, e do que destes vem em troca. Relação biunívoca que por parte do observador resulta no que se pode chamar de intransigente jogo de emoções (pessoais e intransmissíveis, e como tal, em última instância, inclassificáveis). Referências objectivas e factuais subsistem, mas, convenhamos, deixam de importar. O que interessa não é a história de (seja o que for), mas o seu símbolo pictórico inscrito na percepção de cada um. Se simples ou intrincado, pouco interessa.

[Na pintura – pelo binómio: tudo aparece no mesmo plano/ocorre no mesmo instante; no cinema – pela eliminação da distância entre o literal e o metafórico (ideário: Zizek).]

NWR relaciona-se com a modernidade de modo dúplice: sonha-se artista e não consegue escapar à beleza figurativa das imagens, por isso defende-se, expondo o lado negro dessa beleza (reforça-se: ilusão a que não resiste) – homem entre dois atalhos: o do seu ser e o do seu desejo. No fundo, e sintetizando, falamos da exposição dessa fraqueza, dessa ilusão, o que o pode por fim resgatar, pois torna-se ao mesmo tempo deus de um universo (o seu, é claro) e cordeiro sacrificial.

O registo é, pois, o da hipérbole estilizada à boa maneira do príncipe do barroco Dario Argento (banda sonora a condizer), e por essa razão, podemos supor, foi aos contos de fadas buscar a referência primária (ah, Jesse, Capuchinho Vermelho, acossada por todos os lados num mundo sem quaisquer referências, perdida, sem família, rodeada de lobos imaginários, reais e outros com lábios pintados a fingir de cordeiros, tão facilmente iludida – para que servem as bocas? Dizem-nos que para pintar com cores de sexo ou comida, princípio do terceiro excluído; estavas avisada).

Longa vida à Hipérbole!

O Demónio de Néon é o monstro dos contos de fadas dos tempos modernos. Demónio que se esconde por trás da beleza, de resto inscrito nesta, na sua superficialidade. Demónio que se sonha sob doses massivas de maquilhagem e sessões de reconstrução. Demónio que se sonha mas verdadeiramente sem sonhos. Demónio que se exibe nunca escondendo o talento cénico. Demónio que, ainda que sem sonhos, nos arrasta sem travão para as regiões inóspitas do hipotálamo.

Ou seja: Quem consegue resistir a tal Demónio, viagem ao fascínio perverso do espectador? … De que serve?

Para terminar, menino Nicolas, um aviso: não te atrevas a voltar para trás! E tem sempre presente que, depois de resgatado por mim e p’los Cahiers do Cinéma (The Neon Demon ficou em terceiro na lista dos melhores filmes de 2016), nada mais tens a temer.

(Para o F. e para o R.

Sorriam!)

 

Imagem de slantmagazine.com