26 Novembro 2017      11:37

Está aqui

NASCIDO A 4 DE JULHO

"DESVIOS E RESPECTIVOS ATALHOS: FILMES, LIVROS E DISCOS"

Nascido a 4 de Julho (1989), de Oliver Stone

Olhar para trás. Passaram quase 30 anos e, aos poucos, nem a memória é fidedigna. Não em absoluto. Como se fosse uma outra vida, e apetece dizer felizmente. Outono – Inverno de 1989.

E se é assim para o comum dos mortais no mais comum dos países, por um filme, imagine-se para Ron Kovic (rapaz sonhador, adulto paraplégico e personagem exemplar do cinema americano, i.e., que emerge de uma história real e com forte componente simbólica), naquele que se vê como o menos comum dos países, por uma vida.

Nascido a 4 de Julho foi o quinto filme dirigido por Oliver Stone (o quarto se do primeiro nos pudéssemos esquecer – como acreditamos ser desejo do realizador), e o segundo em torno da guerra do Vietname. Ao contrário do que acontece no fabuloso Platoon (1986), de guerra vemos pouco. Depois do combate vem o tempo das consequências.

Filme em 4 partes não-sequenciais:

- O sonhado: Ron Kovic foi criado no seio de uma família conservadora. Certo dia, assiste com a mãe ao célebre discurso de Kennedy onde este declara “não perguntem o que este país pode fazer por vocês, mas o que podem fazer por este país”. Logo, a mãe, a olhar para o cume onde se encontram os seus sonhos, lhe transmite o que espera dele: vê-lo um dia no púlpito da Presidência, a dizer coisas grandiosas num ecrã de televisão. Ron, como todas as crianças, para mal dos seus pecados, acredita no que a mãe lhe diz.

- A bala: Reflexo de Kennedy, assassinado pouco depois do célebre discurso, depressa se percebe que algo de muito diferente o aguarda. Basta relembrar a segunda sequência do filme, instantes antes. Ainda criança, perante uma parada militar, um dos heróis mutilados da Grande Guerra olha-o fixamente enquanto a música se fecha como se numa marcha fúnebre. Tal como à criança de La Jettée, sem o saber, também a Ron é dada a contemplar a sua perda. Nesse instante, no entanto, o palhaço que preside à parada ainda ri. Cerca de trinta minutos de filme (nove anos) depois, uma bala atravessa-lhe a espinha, atirando-o para sempre para uma cadeira-de-rodas.

- O grito: Paraplégico, é enviado para um hospital de veteranos no Bronx. Entre sonhos inacessíveis pelo que lhe resta do corpo, chegada por fim a noite, uniformemente adormecido e a terrível realidade de um corpo só pela metade funcional, Ron tenta manter-se à tona num ambiente inesperadamente hostil. Na maior parte do tempo tem

de lutar, enfim, continuar a lutar, desta vez contra quem não o compreende e de quem agora depende, contra o espaço inactivo ocupado pela tal metade morta do corpo, contra a falta de meios disponíveis no hospital, mas o último conflito é a luta silenciosa contra a crescente perplexidade contra a crescente perplexidade que o vai consumindo - da qual, espelho invertido, sobrevirá a consciência. Na derradeira sequência no hospital, Stone arrisca tudo e resolve emular Munch, e de uma vez por todas o grito encontra o seu espaço no cinema – para lá de qualquer dor, sobressalto, terror, raiva ou condição, para lá de qualquer elemento do real ou de recurso supostamente realista (o que de imediato minaria as possibilidades e traduziria o risco máximo em suicídio inevitável), Ron grita perante a percepção da sua pequenez – átomo de compreensão, ínfimo mas consciente; enfim, da sua insignificância finalmente exposta por ser átomo, da infinidade da perda por dela ser consciente. Ai daquele que percebe, pois vai perceber também a dimensão do Inferno. O Inferno só é infernal quando se apreende (se deduz o efeito e alcança a consequência), não quando se experimenta (quando tudo fica para trás perante a necessidade de sobreviver, vista até ao fim como uma probabilidade superior a zero).

- O discurso: Ron volta a casa de rosto limpo e roupa lavada, mas não vai durar muito. Ninguém se consegue esconder muito tempo da sua consciência a não ser que enlouqueça. Ron inoculado que foi com o vírus da compreensão, não tem como fugir. Uma sobreposição de imagens é o reflexo espontâneo dessa não-hipótese: julga ter morto um companheiro de armas (Wilson) por engano durante a retirada de uma aldeia, onde tropas americanas, momentos antes, atiraram a matar sobre um grupo de mulheres e crianças também por engano. Justaposição de erros tão cara ao método de Oliver Stone. Ron sai, então, de casa para a forçosa odisseia, onde tem de cair ainda mais para que se possa levantar. “Como foi que tudo se perdeu?”, questiona a certo ponto, perante um amigo igualmente mutilado de guerra, longe que se encontram as cadeiras-de-rodas; tal momento vem na sequência de uma queda de uma arriba. Em seguida vai ao encontro dos pais de Wilson, para confessar a autoria da morte do seu filho. Feito o caminho das pedras, finalmente o olhar político, olhar de crescimento. É agora o líder de um grupo de contestatários da guerra do Vietname. Vemo-lo durante uma incursão na convenção republicana de 1972 (prévia ao segundo mandato de Nixon). Apontam-lhe as câmaras de televisão e, afinal, a mãe não se enganara assim tanto; apenas uma questão de perspectiva, não tão em cima quanto seria suposto. Ao nível do solo e num púlpito meio improvisado: braços assentes no metal da cadeira-de-

rodas, a segurar o peso da parte morta do corpo. O discurso que lhe cabe não é sobre a glória, mas sobre o equívoco em que incorreram aqueles que acreditaram na glória oferecida pelos seus superiores. “Enganaram-nos – Estamos aqui para dizer a verdade”; “O nosso aço, estas cadeiras, este aço é o vosso memorial day (feriado nacional americano - dia de homenagem aos soldados mortos em combate) sobre rodas. Somos o Yankke Doodle Dandy que regressou a casa.”; “Porque é que nos cospem, nos combatem nas ruas, nos atacam com gás lacrimogéneo? Para esconder a mentira! A verdade é que destruíram toda uma geração…”. No final do filme, antes de um novo discurso (que não ouviremos), agora na convenção democrata de 1976, Ron diz que nos últimos tempos se voltou a sentir em casa. Talvez, acrescenta. A música é grandiosa, todos aplaudem o homem que se desloca lentamente, meio aos esses, na cadeira-de-rodas. Alguém lhe põe um microfone à frente, outros tiram-lhe fotografias. Vemo-lo desaparecer na multidão, finalmente reconhecido pelos seus pares. Enfim, lá vai o nosso herói titubeante numa cadeira-de-rodas. Tão devagar, instável e sofrido que até pode parecer muito, quase tudo o que quisermos, mas não um herói como nos ensinaram em pequenos que se devem parecer os heróis…

O cinema de Oliver Stone não é subtil na aparência, todavia não por erro de compêndio do realizador. É antes um meio para atingir o fim que pretende. Uma escolha reflectida mais do que sentida, apesar de parecer o contrário. Como Kubrick usava a opressão estética para que melhor a pequenez do ser humano se diferenciasse do belo mostrado, Stone oprime-nos com figuras de estilo para que melhor se perceba a armadilha potencialmente mortal do imaginário social quando transformado em código de conduta de aplicação absoluta. Tais meios de expressão, vistos de forma demasiado literal, geram equívocos: a Kubrick tantas vezes se acusou de ser frio e a Stone tantas vezes acusaram de ser demasiado emocional. E ambos (esta fere!) foram a seu tempo declarados como cineastas superficiais. Kubrick, mais estético e sempre distante da mundanidade (Stone é um cineasta político, e por isso necessariamente mundano) foi entretanto recuperado. Stanley Kubrick, homem distante do mundo, que não resistia à última possibilidade do mecanismo, quando não o inventava operando como demiurgo para quem a evolução natural da humanidade não bastava.

Quanto a Stone, o uso e abuso de figuras de estilo e de referências mitológico-simbólicas por meio dessas representações sempre tão infladas tem um propósito.

Nascido a 4 de Julho, nesse pressuposto, é súmula, pela sucessão de quadros mitológico-simbólicos nos quais se escora. Precisa que as expectativas do espectador se vão mantendo intactas, e o espectador necessita de símbolos para uma rápida identificação. Julgando reconhecer a mensagem sente-se confortável. Stone responde à armadilha da moral em termos aparentemente muito semelhantes – é fácil criar um posicionamento: ou desde logo ferverosamente contra, ou desde logo ferverosamente a favor. E só assim, excluída a indiferença como hipótese, eliminada essa distância, Stone pode ir aos poucos introduzindo elementos dissonantes, que cada vez são mais, e mais explícitos, atirando-nos ao fim de algum tempo para onde já perdemos o pé. O que resta é o absoluto desconforto, e dele só podemos sair sem excessivo orgulho, aspirando à sobrevivência onde for possível, mesmo se em terra estranha.

Não, Stone não aspira à pedagogia, é antes alguém que propõe um espaço de liberdade. A exigência da reflexão não é sua, deveria, isso sim, ser nossa.

 

Imagem de cinemaedebate.com