28 Janeiro 2017      11:58

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NASCE MAIS UMA ESCRITORA NO ALENTEJO (com entrevista)

O Alentejo tem sido um espaço fértil ao nascimento de novas criações literárias, quer por parte daqueles que por cá passam, quer por parte daqueles que cá nascem.

Recentemente foi lançada a primeira obra de mais uma escritora alentejana, Marta Prates. Natural de Évora, mas a viver em Reguengos de Monsaraz, Marta foi vencedora de um concurso de Escrita Criativa promovido pelo escritor "best-seller" Pedro Chagas Freitas.

“Não te esqueças de Sentir” foi lançado em Lisboa, a 14 de janeiro, na casa da Editora Chiado e é o reflexo das leituras e vivências da autora, que evidência já uma forma muito peculiar de estar e fazer escrita.

 

“Às cinco em ponto da tarde como no poema de Lorca, todos os dias a esquina da Rua da Preta é o palco de uma vida inventada, um avesso que é o lado certo para quem não tem mais nada.” 

 In “Não te esqueças de Sentir”

 

A autora alentejana esteve à conversa com o TRIBUNA ALENTEJO e descreve-se assim: “Sou das palavras, da brisa fresca e do branco, do sono, do rir, dos amigos e das conversas regadas a música, sou de ler e de gostar e de sonhar. Sou da beleza, da cor e do amor, da vida e de viver, por tudo e por nada. Psicóloga de profissão, tenho nos afetos a soma dos dias e nas emoções fonte infinita de inspiração. Sou de amores longos, das minhas filhas, da meditação e do cheiro a terra molhada. Sou de escrever e quando escrevo viajo para um mundo de lugares e sentires de onde custo a regressar. Preparei-me desde sempre para a escrita e a escrita veio ao meu encontro à hora marcada. Aqui estou.”

 

TRIBUNA ALENTEJO –  Marta, como começou a paixão de escrever?

Marta Prates (MP) - A paixão da escrita, e da leitura porque as considero indissociáveis, apareceu por altura da adolescência, aquela idade em que, como toda a gente, achava que era uma ilha única num oceano de incompreensão, e então escrevia longos textos num diário, páginas de lamentações, de segredos, de emoções arrebatadoras que só mais tarde percebi que mais não eram do que afetos associados ao processo de crescer. Também por essa altura fiquei em casa com uma dessas maleitas normais dos miúdos, e para passar o tempo resolvi ler um livro – consigo ver-me de pé junto à estante a escolher e a pegar naquele que se tornou o livro mais importante na minha vida porque me despertou para o mundo das letras e da beleza que pode estar fechada dentro de umas quantas páginas, pronta para ser apreciada a qualquer momento – esse livro chamava-se Jubiabá (talvez este nome exótico tenha tido influência na escolha), de seu autor o enorme Jorge Amado, escritor baiano cujos livros passei a devorar desde então. A quietude dos dias que passei em casa doente, a escrita intensíssima do autor, os temas (alguns desadequados para a minha idade, tornando tudo ainda mais interessante), as letras minúsculas nas folhas amareladas tão caraterísticas das edições da época, e a vontade imensa de ler, ler, ler, despertaram-me, para sempre, para a literatura. Nunca mais parei de ler, fui guardando em mim o universo das folhas dos livros e, mais tarde, quando comecei a escrever contos, percebi que estava cativa das palavras.

TA – E quando surgiu a oportunidade de escrever um livro, como se sentiu?

MP - Foi difícil dar o passo de mostrar os meus escritos, muito difícil, as pessoas mais próximas testemunharam essa resistência – tinha receio da opinião alheia, que ninguém gostasse do que escrevia, que a qualidade que agora já acredito que os meus textos têm, existisse só na minha cabeça. Por isso, o processo demorou, literalmente, anos, até um dia em que acordei decidida e me inscrevi num concurso de escrita criativa que consistia em produzir, durante várias semanas, textos inspirados num tema que era antecipadamente enviado aos participantes. Mais uma vez não foi fácil pois a prova revelou-se muito exigente - os temas exigiam uma imaginação incrível, a inspiração sob pressão às vezes é tramada, era necessário ter já um bom domínio da escrita para lutar pelo primeiro lugar e, sobretudo, obrigou-me a uma disciplina de escrita a que não estava habituada. Mas os dados estavam lançados e mesmo que custe a começar, quando me entrego a um sonho movo o mundo para o alcançar, e foi o que aconteceu, depois de um esforço imenso ganhei o concurso de escrita criativa e o prémio foi a edição de um livro. A resposta direta à pergunta de como me senti – nas nuvens! Senti o esforço reconhecido e a qualidade da minha escrita comprovada. Senti que era capaz. Ultrapassei a insegurança e hoje tenho a certeza de que o resultado final tem qualidade, o livro está aí, e as críticas têm sido fantásticas. Estou muito, muito feliz com o resultado.

TA – Como definiria “Não te esqueças de sentir”?

MP - Este é um livro de histórias de gente, histórias com que todos nos podemos identificar, aqui e ali. É um livro sobre a diversidade da vida, com contos curtos e, muitas vezes, de fins inesperados. Alguns textos foram escritos para o concurso e depois trabalhados para o livro, já com mais liberdade e menos regras, outros são completamente inéditos. Procurei escrevê-los serenamente, com muita dedicação e muita entrega. Como diz no início do livro, “estes textos nasceram devagar, demoraram tanto tempo a aparecer quanto eu própria demorei a encontrar-me, mas sempre estiveram cá, atentos, na forma de letras feitas sentinelas à espera do dia certo. Por fim esse dia surgiu e as palavras mostraram-se, senhoras de vontade própria fizeram-se histórias de gente e de sentir, pedaços desse lugar imenso que é a vida onde todos somos desalinho e paz, silêncio e tantos mundos, mar adentro e terra à vista”.

 

TA – E as histórias que o compõem? Como surgiram? Onde foi buscar a inspiração?

MP - Como disse lá atrás, algumas histórias foram escritas para o concurso mas que entretanto foram revistas para o livro; outras são completamente inéditas. Mas para responder honestamente à questão tenho que dizer que não sei de onde vem a inspiração, parece cliché mas juro que não é. O livro tem 43 histórias, todas diferentes. O processo é para mim, que já desisti de o tentar perceber e prefiro saboreá-lo, misterioso e mágico - de repente numa folha em branco começam a aparecer gente e lugares e cheiros, cores do campo e maresias de oceano. Há histórias de amores e desamores que nunca vivi nem ouvi falar, há histórias de gente e de vidas que nunca conheci. Escrevi empurrada por sei lá que força sobre marinheiros, abandonos, encontros e estações de metro, mulheres e gatos malhados. Pode ler-se sobre cartazes na parede, vinhos bebidos na solidão da madrugada, amantes escondidos e pães de véspera. Pais, mães, bairros de lata, gaivotas e arroz de pato. Isto tudo explico no meu blog, onde escrevi um dia que a inspiração é como um doce gelado de mirtilo, não para perceber, mas para saborear.

 

TA – Quais são os seus escritores e obras preferidas? Algum serviu de inspiração?

MP - Sempre li muito, desde o episódio de “Jubiabá” de Jorge Amado que nunca mais parei de ler. Li muitos dos seus livros e durante muito tempo anunciei aos sete ventos que “Capitães da Areia” era o livro da minha vida – um exagero porque entretanto já li tantas coisas fantásticas que agora muitos ocuparam essa categoria. Gosto de Sophia de Mello Breyner, do seu filho Miguel Sousa Tavares (já perdi a conta às vezes que reli “Equador”), dos poetas Pessoa, Eugénio de Andrade, Pablo Neruda e Lorca. Passei pela literatura latino-americana com o genial Gabriel García Márquez, sou apaixonada por Isabel Allende e o seu realismo mágico e por isso tenho na “Casa dos Espíritos” mais um dos livros da minha vida. Há em minha casa de tudo um pouco, de grandes épicos que contam histórias de impérios longínquos a pequenos e encantadores livros de contos de Mia Couto. Li os clássicos, dos amores trágicos de Camilo à intriga dos “Maias”, e adoro a ideia de epopeia de Camões. Recentemente, depois de uma visita a Auschwitz e a conselho de uma amiga, li pela primeira vez Primo Levi e gostei muito da sua escrita, profunda e envolvente. Depois há Kafka, Peixoto e Damásio. Ultimamente andei totalmente absorta pela trilogia “O Século” de Ken Follett, livros que são uma lição de história extraordinária. Agatha Christie e Sherlock Holmes para distrair, Paulo Coelho em momentos de maior espiritualidade. E, claro, correndo o risco de me repetir, o inevitável Jorge Amado, pai de santo da Bahia, cuja casa já tive o imenso privilégio de visitar, em Salvador. Todos, à sua maneira, me influenciam e me inspiram, todos. Pela sua visão do mundo, das pessoas, dos factos, pela forma como escrevem e como me tocam o coração. Duas das minhas maiores riquezas são a minha pequenabiblioteca e tempo para a ler.

 

TA – Vêm aí mais livros? Que tipo de livro gostava de escrever a seguir?

MP - Sim, já estou a escrever o próximo, que será um romance, intenso e muito profundo do ponto de vista da pertença a um lugar, a uma terra, a uma família. Estou a trabalhar afincadamente nesse novo projeto, que terá muito de Alentejo porque é o meu chão, de mundo porque adoro viajar e fui guardando em mim tanto que merece ser contado, e, claro, terá muitas histórias com gente dentro, muitas pessoas – as suas emoções e a soma dos seus afetos são a minha principal matéria-prima. E não posso revelar mais, a seu tempo - a escrita é um exercício de paciência, longo e, por vezes, doloroso porque exige solidão – haverá novidades.

 

 

Estão previstas novas apresentações da obra em Reguengos de Monsaraz, Évora, Porto e Algarve. Entretanto pode seguir a escritora em martaprates.wixsite.com/martamilmundos ou via Facebook em facebook.com/naoteesquecasdesentir/.

 

Fotografias de João Fructuosa