21 Fevereiro 2016      14:40

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NÃO! NÃO, NÃO E NÃO!

"INCONSTÂNCIAS"

As noites seguem-se embebidas no mesmo movimento solitário que é ser-se humano: paredes de cal branca, uma casa simultaneamente gaiola que nos limita e nos acomoda, uma cabeça saturada das palavras ditas e reditas na futilidade dos dias, uma boca que aprecia o silêncio que é o sufoco de ter uma cabeça saturada das palavras saturadas dos dias saturados. Do outro lado da cama há quem durma e quem questione o silêncio no seu silêncio e a distância entre os silêncios trocados é mais curta que a distância de uma linguagem repetida e banal. Uma linguagem que são agora manias e o cansaço do que é ser-se humano: os círculos redondos da interacção tão necessária quanto desprezível.- Compreenda-me, desprezível porque sempre aquém e além. Desprezível porque aperfeiçoada para nos servir no ego e na dignidade que não são e nunca serão perfeitos. O movimento de chorar mil anos para descobrir que as lágrimas não nos salvam. Nunca nos salvarão.

 

Se neste momento pensa que sou mais uma niilista de convicção, dotada do nome como de uma estrela ou cartaz neon na testa, descanse: não sou nada que tenha um rótulo e sou todos os rótulos que neste momento me doa. Uma mistura das suas expectativas e da sua leitura tão relativa quanto a minha posição perante a vida. Uma posição de pé fincado. Uma posição firme e hirta ainda que calejada. De joelhos arranhados e mãos cobertas de calos resultantes dos encontros com o chão tão delicado quanto a minha face: fechada. Coberta. Silenciada pela ocasião para lançar o grito – para gritar tanto, tão profundamente que verá nele as minhas entranhas. Se neste momento pensa que existe um momento de tristeza neste discurso, não se engane, é tudo raiva, é tudo cara para bater, peito para encher. É tudo coragem de ouvir que a vida pede mais calma. Uma temperança mal explicada que nos engana e nos torna passivos na pacificidade. – Não. Que oiça de mim, se de mais ninguém, não. Um cru não; o cru não que nos pouparia do desgaste das conversas de circunstância e das mariquices refinadas da contemporaneidade.

 

Competimos para encontrar o herói mais afável da nossa idade quando não o conseguimos ser – e quanto o queremos nós ser! Somos montras que se decoram de qualidades como se de luzes natalícias, bonecos mecanizados que se movem ao ritmo de uma música programada, de um propósito tão vazio quanto a nossa cobiça pela glória. A glória de um homem que é melhor que todos os homens porque mais meigo, mais caridoso, mais simples, mais modesto, mais tudo…mais nada.

 

Que se lixem estes heróis! Estes meio-deuses de aparência e palavra que não fazem jus á miséria que é a realidade, á realidade que é o grito em que se notam entranhas e sangue e suor. Que cansada estou destas figuras perfeitas que não representam os meus cacos interiores que não me saciam a fome da verdade do que observo. Que cansada estou destes manequins envernizados que tão rapidamente riem com a sonoridade propositada de um megafone como choram com a forjada intensidade de quem ainda não aprendeu que amanhã é outro dia. Que lhes importa que amanhã seja outro dia? São manequins e estão aqui para dizer: olha para mim.

 

Não! Não quero estes heróis de contos de fadas, de enredo e personalidade rasa na minha história. Não quero terminar a noite a relatar do seu choro e a beber culpa do meu ímpeto de anti-herói que não se sabe conformar. Não quero!

 

E não quero é também dizer não tenho que ser assim: tenho direito de deixar o verniz estalar. Tenho o direito de acreditar que amanhã existe outro dia em que não preciso de cronometrar o tempo disposto a rir ou a chorar. As boas acções documentadas em mais um estado em mais uma rede social para alimentar mais um ego, para dignificar mais uma dignidade imaginada. Não quero é gritar mas é gritar em passos que se desviam do caminho que nos traçaram eramos ainda fetos, é gritar em coragem porque é isso que necessitamos para não ser o que é esperado que sejamos: coragem. Cara para bater. Mãos calejadas. Joelhos arranhados. Ser pessoa de carne e osso, de raiva e medo, de espontaneidade e essência. Pouco me importam aqueles cujas vidas parecem saídas das primeiras páginas da revista do jet set português. Pouco me importam aqueles que descrevem o quão incrível é a felicidade de viver as suas vidas. Pouco me importam aqueles que precisam de dizer o quão felizes são as suas vidas como se a principal necessidade fosse a glorificação mediática da sociedade.

 

Eu gosto daqueles que estão partidos. Dos que têm cicatrizes para mostrar e não se importam com o quão feias são porque se orgulham das mesmas. Orgulham-se da beleza grotesca das cicatrizes com que aprenderam a viver. Pelas quais aprenderam a gritar. Eu gosto dos que têm a face fechada mas um olhar totalmente receptivo. Gosto dos que sabem que o silêncio diz mais que palavras e palavras polidas e endeusadas. Gosto dos que dizem palavrões,  dos que se revoltam com a vida, dos que não têm medo de serem chamados de inconvenientes, idiotas, ridículos, loucos. Porque os loucos estão certos. E, mais importante, os loucos são aqueles que dizem não. Não de boca cheia e peito cheio e punho cerrado. Não porque não. Não porque não querem que as suas noites se repitam na saturação que é ser cheio do “sim” porque parece bem. O “sim” porque fica bem. O “sim” que engole um cansaço que não é mais que o desfile superficial e simplista de todos os manequins que querem ser heróis e não compreenderam ainda que os heróis são ilusões bem criadas.

 

Não! Não, não e não. Recuso-me hoje, perante si, a ser mais um modelo da perfeição ilusória, da fachada social mesquinha. Não! De punho cerrado e cicatrizes ao peito. – Eu quero pessoas reais, feridas, duras porque a vida é dura. Não, não e não! Eu não estou aqui para ser mais uma tendência ou uma imagem. Estou aqui para ser uma pessoa; e ser uma pessoa é um trabalho sujo e duro, agridoce, mas a beleza não está no verniz mas no grito. A beleza está no grito que não se cala por mais que o tentem calar.

 

As noites seguem-se embebidas nas mesmas condenações públicas como se no púlpito: tens que ter calma, tens que descontrair, tens que ser menos abrupta. Não. Hoje eu digo não, não e não. Eu tenho que ser quem sou. Nós temos que ser quem somos – e se isso inclui dizer não (e vai incluir), se inclui cerrar o punho, se inclui gritar das cicatrizes e do grotesco, que seja.

 

Não! Não e não! O mundo não precisa de heróis. O mundo precisa de pessoas com cara para bater, joelhos doridos, mãos calejadas – O mundo precisa de pessoas de coragem. Pessoas que tenham principalmente a coragem de dizer não, não e não!