Muito simples. Eu levanto minha mão direita. Se vejo alguém como eu levantando a mão direita, significa que a pessoa do espelho está de volta. Na verdade, durante alguns dias senti que estava sendo observado quando verificava a limpeza dos dentes ou aparava a barba. Eu não tinha notado. Mas esta manhã eu fiz a pergunta:
- Com que então estás de volta?
- Eu nunca saí, tu é que estavas distraído. Porém, vejo que este ano passou a voar e tua barba está completamente branca.
- Realmente. Para vocês, por trás dos espelhos o tempo não passa? Frustrações, amor, morte, alegria, raiva?
- Quanto tanto a vocês, mas de forma indireta.
- Não estou a perceber.
- Recolhemos as migalhas da vossa alegria e dos vossos sentimentos, o lodo da vossa raiva, os fragmentos da vossa dor. Tudo o que resta disso numa imagem criada na vossa superfície de vidro. Para cada um de vocês, ator ou músico de sucesso, náufrago ou funcionário de supermercado. Lemos o que você raramente sabe ler em si mesmo e no que vê ao seu redor. Neste sentido, o vosso tempo existe para nós no nosso olhar.
- Como é que vocês escolhem memórias de tudo isso?
- É uma questão de pura memória individual. Não utilizamos escrita, palavras ou outros meios de “compartimentar” (como vocês gostam de chamar) ou arquivos, exceto, às vezes, desenhos com muitas cores.
- Podemos ver esses desenhos?
- Só se tiver curiosidade de olhar para si mesmo: muitas vezes fazem parte dos seus sonhos, dos quais recolhemos as cinzas.
Não entendi muito bem isto. Ainda estava escuro lá fora e voltei para a cama. Sobre a mesa havia um livro com um cartão postal marcado na página 90. Isso é certo, porque ainda está lá. O resto não sei.
Agradeço a Haruki Murakami, cujo último livro - "The City And Its Uncertain Walls" - talvez esteja presente nestas linhas.
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Nota do editor: Giuseppe Steffenino, natural do noroeste da Itália, está ligado a nós pela admiração que ele tem a Portugal e ao Alentejo em particular. Médico cardiologista reformado, é apaixonado por lugares estrangeiros e marcados pelo idealista; interpreta este tempo curvo, oferecendo-nos os seus sonhos, leituras, viagens, lembranças, pensamentos, perguntas, etc.