16 Julho 2022      09:57

Está aqui

Monte das Almas

Sentava-se solitário no poial caiado de branco. Detentor de uma pele enrugada, queimada e rasgada pelo Sol intenso dos dias de verão, a sua única companhia era um cão rafeiro, que se sentava na pequena sombra que o homem lhe proporcionava.

Vestido de negro, com uma camisa tão queimada do Sol e do tempo como a sua pele, via-se nele o peso de uma vida e de muitos anos. O seu olhar perdia-se no horizonte, na imensidão dos montes e dos vales em frente ao Monte das Almas. Neste tempo de verão, tudo o que se avistava era um misto de verde seco com castanho e amarelo torrado.

Na mão direita um cajado para ajudar na mobilidade que pouco conseguia passar além da ombreira da porta. O homem estava já sozinho. O luto que carregava na sua camisa negra, marcada pelo sal que o suor já seco deixava, mostrava o tempo. Era como se cada nódoa fosse a contagem do tempo, cada camada um ano, a seguir ao outro. Não fossem as cataratas que turvavam a vista do homem, talvez se pudessem ver as cegonhas lá ao fundo.

O cão afitava a orelha sempre que se ouvia o barulho de uma Famel ou Zundapp lá em baixo no córrego, mas esse gesto e esse som era cada vez mais escasso. No monte, ainda impecavelmente caiado, ouvia-se o barulho das abelhas de volta dos pêssegos e das pêras, sacando o doce que ainda mal se notava. A fruta não chegava a amadurecer. Nem só as abelhas sobreviviam. Também os pássaros aguardavam o seu momento para se alimentar e sobreviver ao calor do Alentejo.

O cansaço via-se no rosto do homem. Essa semana nem o padeiro, nem o peixeiro, nem o homem da mercearia tinham vindo. O apito de cada um, todos diferentes entre si, não se ouvira nos últimos tempos, nem fizera o cão afitar a orelha.

O homem olhava para o horizonte esperando o regresso dos vivos e dos mortos. No Monte das Almas, a única que ainda subsistia e carregava em si a memória de todas as outras, aguardava a sua hora de deixar o luto, a hora de o postigo se fechar e que o carreiro de terra batida que marcava o caminho entre o Monte das Almas e a estrada alcatroada se cobrisse de ervas e por lá não passasse mais carro ou carrinha.

O homem dera o nome ao Monte, sabendo que lá ficaria a sua alma, ali se separava o corpo do espírito, como se separam as estações do ano entre si.

No Monte das Almas, hoje, são mais as que agora lá estão do que aquelas que por ali passaram.