4 Maio 2018      17:03

Está aqui

A minha terra tem uma Torre.

As minhas primeiras memórias, enquanto morador na “rua da pouca farinha”, são de uma equipa de homens a conversarem e rirem alarvemente enquanto trabalhavam “empoleirados” nas paredes imensas do edifício de apoio à Torre.

A Torre, construída a partir do gargalo de um poço, impunha-se céu acima e como que retardava o nascer do dia na minha janela. Já lá estava quando, ainda uma criança, para lá fui morar. A Torre tinha uma coruja branca, enorme, que piava noites inteiras e que do ponto mais alto da Torre se lançava em voos que se ouviam da minha janela. Tinha densidade o voo da coruja da torre, tinha mistério, tinha imaginário de vampiros, de bruxas e de histórias sem fim de crianças perdidas na subida á Torre, picadas pelo bico enorme da coruja branca que era a guardiã da Torre.

Hoje recordo com carinho as noites em que me dedicava a ter medo do que poderia vir em voo do cimo daquela Torre.

Na verdade, hoje tal como então, a Torre é uma construção inacabada que ali está plantada no meio da vila onde eu nasci, envolvida por inúmeros edifícios enormes, também eles inacabados. É uma espécie de monumento aos sonhos inacabados, no meio de uma vila que ela própria é um desafio imenso por acabar.

A Torre foi o sonho de um homem à frente do seu tempo que resolveu ir morar para ali e ali construir uma fábrica de sofás. O Sr Ferreira, como sempre me habituei a chama-lo, era um homem diferente, difícil de perceber, mas prosperou a encher de sofás os prédios todos, que nasciam como cogumelos, no Algarve.

Essa fábrica deu emprego a muitos jovens de então, que hoje são os pais e avós dos filhos de S. Teotónio. Foi onde muitos aprenderam o ofício de estofadores e de carpinteiros e foi essa fábrica que definiu aquela vila do sudoeste alentejano como um centro de referência no fabrico e comércio de móveis. Esses jovens cresceram, revoltaram-se com o Sr Ferreira e criaram a sua própria cooperativa onde, felizes, continuaram a encher de sofás o Algarve.

O fim da cooperativa é outra história que não cabe aqui, mas, na verdade, gosto de pensar que hoje S. Teotónio tem tantas carpintarias e pequenas unidades de estofadores de enorme qualidade porque o Sr Ferreira, um dia, chegou no seu carro “boca de sapo” e decidiu fazer, ali, uma fábrica de sofás.

Fez também a Torre e os edifícios em volta. Diz que a Torre era para conseguir ver o mar dali, mas ele contou-me a história de que o que queria fazer era um hotel de luxo, lindo de morrer, a que daria o nome de “branca de neve e os sete anões” e onde a Torre seria a “branca de neve” (eu juro que isto é verdade).

Eu nunca fui de admirar “homens” providenciais, mas que existem pessoas que são capazes de definir oportunidades nos seus territórios e de mudar os destinos desses territórios isso existem. Quando penso no Sr Ferreira penso sempre no que seria hoje S. Teotónio se ele tivesse “acabado” o sonho dele como outros o fizeram. Penso em Campo Maior e penso em muitos outros locais que de “interior” se fizeram “litoral”.

O Sr Ferreira morreu, sozinho, por estes dias na cama de um hospital. A Torre ali continua inacabada, servindo de suporte à estrela de natal na minha terra. As ruínas em volta da Torre são como uma ferida aberta no meio da vila. Mas, por incrível que possa tudo isto parecer, aquela Torre significa que o sonho persiste e que é possível, cada um de nós, fazer a diferença no futuro de todos nós. Não basta sonhar, mas isso já é um começo!