23 Julho 2016      10:09

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MIGAS

"PARALELO 39N"

Isto, se tudo correr bem, aterrei há poucas horas em Lisboa, volto a pisar o solo da capital, no Aeroporto Humberto Delgado. A longa caminhada entre a saída do avião e a recolha das bagagens faz-me pensar, passo após passo, que estou a pisar território nacional mais uma vez, durante alguns dias apenas. Recordam-me estes passos a primeira vez que saí do país. Corria o ano de 1996 e fui passar oito dias a Londres, precisamente a um intercâmbio sobre a União Europeia com jovens de todos os países. Recorda-me esta viagem os bons momentos que foram e a nova experiência que foi para mim. Descobrir um mundo novo, andar de avião pela primeira vez, falar uma outra língua todos os dias, pela primeira vez. Era tão jovem e os anos eram outros. Passava a vida toda em Portugal e duas semanas fora do país.

Agora, a situação inverteu-se e passo a vida toda fora de Portugal e duas semanas no país para matar as saudades. Já estou habituado. Nós habituamo-nos ao que a vida nos dá. Não deixamos de ser a mesma pessoa interiormente mas os pequenos mosaicos que somos transformam-se e aumentam a cada dia numa experiência diferente.

Chego hoje de novo a Portugal depois de ter passado seis meses fora, mais uma vez. Curiosamente, desta vez faço o percurso inverso. Vejo o mundo do oeste para o este e mantenho-me no mesmo paralelo e no mesmo hemisfério. Viajo e caminho com a mesma segurança e sensação de um regresso, de mais um regresso. Caminho até à recolha de bagagens e são seis da manhã. À semelhança do que me aconteceu há anos atrás, apetece-me uma refeição típica do meu Alentejo. Lembro-me vivamente da mesma sensação, na mesma época de verão, há vinte anos atrás precisamente.

Dessa vez, tinha passado pouco mais de uma semana fora do país e as saudades pareciam inundar-me e a vontade de sentir os cheiros e os sabores da terra que me viu nascer faziam-me um marinheiro que passara anos e anos navegando comendo apenas laranjas para evitar que o escorbuto me transformasse. Desta vez sou tanto quanto isso, as saudades ainda me inundam por dentro, um dia, todos os dias, mas lido bem com elas, acomodo-as nos compartimentos onde se alojam e me fazem sorrir. São as saudades que nos dizem que o dia de amanhã espera e será sempre melhor do que este de hoje. Precisamente por não o conhecer, faz com que eu o espere com ansiedade, seja por bons ou maus motivos. Para superar este mau de hoje, ou para igualar o fantástico que foi.

Dessa vez, no caminho para casa, parei perto de Grândola, no Castelo Ventoso, e no restaurante Chinita, comi umas migas. Ansioso pelos sabores do meu Alentejo, nunca umas migas me tinham sabido tão bem. A sua qualidade já inerente superava-se e parecia-me que ainda hoje o meu palato as sente a dissolver no meio do entrecosto frito. Talvez por isso um dos meus pratos favoritos sejam as migas. Gosto de as cozinhar, gosto de partilhar as saudades através das migas. As migas são o trigo e a lavoura, as migas são a farinha e os moinhos de vento e de água, as migas são a massa e o pão. As migas são o Alentejo, acompanhadas de entrecosto ou lombinhos fritos em alho, louro e azeite. As migas são as minhas saudades de casa, derretidas no palato. Talvez por isso as goste de cozinhar para amigos e por isso eles me chamem o Zé das Migas. São as viagens que fazemos que nos moldam, são as pessoas que conhecemos e que estimamos que nos identificam e são os pratos que comemos e tantas vezes confecionamos que são as nossas memórias.

Enquanto caminho no corredor de acesso à saída, sinto o aroma da comida e o sabor do pão envolto em ovos e laranja, devidamente enrolado no sabor do azeite e do alho onde a carne foi frita. Hoje sou tão alentejano como em todos os dias. Hoje hei de almoçar migas, tal como há vinte anos.

 

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