12 Outubro 2020      09:37

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Pediatras do Hospital de Évora (HESE) lançam Manifesto

A equipa médica do Serviço de Pediatria em face da recente reestruturação do Serviço de Urgência Pediátrica emite o presente manifesto com o objectivo de alertar a tutela e apelar a resoluções urgentes e sólidas que salvaguardem a manutenção de cuidados de saúde de qualidade à população infanto-juvenil do Alentejo.

O Hospital do Espírito Santo de Évora serve a população do Alentejo há mais de 5 séculos e é considerado Hospital Central desde 2008, sendo o único com estas características na Região Alentejo.

Para que se perceba o verdadeiro impacto da actual restruturação da Urgência Pediátrica imposta pelo Conselho de Administração e Direcção Clínica importa saber que:

O Serviço de Pediatria presta assistência à população infanto-juvenil do distrito (estimada em cerca de 26000 crianças) e à população dos distritos limítrofes que acorre ao Serviço, quer pela maior diferenciação em algumas áreas, quer pela enorme carência de recursos e meios humanos sentida também nos outros hospitais da Região Alentejo.

No início da década de 80, o Serviço contava com apenas 2 Pediatras. A taxa de mortalidade infantil era na altura de 24,3‰ e a taxa de mortalidade neonatal de 11,3‰. Ao longo dos anos o Serviço cresceu e diferenciou-se, movido pelo empenho dos médicos internos formados no Serviço e que ficaram após terminada a sua formação e de especialistas que, formados noutros hospitais escolheram o Hospital de Évora para continuar a sua actividade, seduzidos pela hipótese de crescimento profissional.

Em 1990 foi criada no Serviço de Pediatria a Unidade de Neonatologia que evoluiu como Unidade de Cuidados Intensivos Neonatais e em 2001 permitiu que o Hospital do Espírito Santo de Évora fosse considerado um Hospital de Apoio Perinatal Diferenciado. Desde então a Unidade de Neonatologia recebe recém-nascidos independentemente da idade gestacional, sendo a unidade de referência da Região Alentejo. Recebe ainda recém-nascidos de outros distritos do país, sempre que não existam vagas nas unidades de neonatologia locais. É por isso que se pode nascer prematuro no Alentejo. É por isso que a taxa de mortalidade neonatal do Alentejo é semelhante à Nacional (1.9‰ em 2019).

Actualmente o Serviço dispõe de uma Enfermaria de Pediatria, Hospital de Dia, Consulta Externa de Pediatria e sub-especialidades, Serviço de Urgência de Pediatria e Unidade de Cuidados Intensivos Neonatais. É o único Serviço do Alentejo com Centro de Tratamento de dispositivos de Perfusão Contínua de Insulina (PSCI). É por isso que as crianças com diabetes do Alentejo beneficiam dos mesmos cuidados e tratamento que nos grandes centros, sem necessidade de deslocações.

No que diz respeito ao Serviço de Urgência de Pediatria, há 30 anos as crianças com situações de doença urgente eram observadas no balcão de homens ou de mulheres da urgência geral, consoante estivessem acompanhados pelo pai ou pela mãe e eram observados pelo médico que estivesse disponível, sem diferenciação em Pediatria.

Em 2001 o Serviço de Urgência de Pediatria passou a existir, em espaço próprio mas exíguo para as necessidades de uma pediatria que também cresceu, e que passou posteriormente a prestar assistência a todos os jovens até aos 18 anos. Actualmente dispõe de novas instalações.

Até 2007 a Urgência Pediátrica era referenciada, o que significa que assistia as situações urgentes e emergentes, cumprindo a função que um Serviço de Urgência deve ter. As situações não urgentes eram avaliadas nos Cuidados de Saúde Primários.

O Serviço de Urgência sempre funcionou 24horas por dia, 7 dias por semana, assegurado por apenas um Pediatra e um segundo elemento em formação ou médico indiferenciado, contrariando as disposições legais que prevêem a dotação de pelo menos dois Pediatras. Contrariamente às informações correntes na Comunicação Social não existem nem nunca existiram dois clínicos gerais em funções no Serviço de Urgência Pediátrica.

A partir de 2007, por decisão à qual somos alheios, a urgência deixou de ser referenciada, ou seja, passou a assistir todas as crianças que aí acorrem independentemente da gravidade, com consequente aumento do afluxo. Em 2012 o limite etário pediátrico passou dos 14 para os 18 anos, o que aumentou mais ainda o movimento. São atendidas na urgência cerca de 20.000 crianças/ano e os internamentos em SO aproximam-se dos 1500/ano. Não houve reforço de Pediatras na Urgência.

A par da actividade clínica, o Serviço de Pediatria tem idoneidade formativa e aqui se formaram 17 novos Pediatras na última década, que nos procuraram pela excelência do Serviço e nos honraram com classificações de destaque a nível nacional quando terminaram a especialidade.

O mérito atingido pelo Serviço faz com que alunos de Medicina de Universidades nacionais e estrangeiras nos procurem regularmente para estágios de Pediatria. Os profissionais do Serviço têm assento em diversas sociedades científicas, participaram ao longo de anos em Reuniões científicas nacionais e internacionais.

No entanto, desde há vários anos o corpo clínico tem envelhecido, os jovens Pediatras na sua maioria saíram do Serviço em busca de melhores condições de trabalho e oportunidades de valorização profissional que encontraram nos grandes centros, no sector privado e no estrangeiro. Os Pediatras que continuaram, resistindo às adversidades, cedo reconheceram que a escassez de recursos humanos representava um entrave à continuidade da prestação de cuidados de qualidade.

Desde 2016 foram sistemáticos os apelos ao Conselho de Administração Hospitalar e à Administração Regional de Saúde do Alentejo dando conta da escassez de recursos humanos. Múltiplas cartas sem resposta que não nos desmotivaram porque sabíamos que se não denunciássemos a situação o nosso Serviço tal como o conhecíamos iria terminar.

O Serviço de Pediatria manteve-se graças ao esforço dos seus Pediatras que em prejuízo da sua saúde e vida pessoal trabalharam de forma exaustiva, para além dos limites etários a que eram obrigados, com recurso regular a trabalho extraordinário e nunca deixaram a sua população sem assistência.

Em 2018 o problema do Serviço foi mediatizado, houve promessas de melhoria dos recursos humanos que nunca passaram a estratégias objectivas. Em 2019 a equipa enviou à Ordem dos Médicos e ao Conselho de Administração o seu pedido de escusa de responsabilidade profissional por alguma situação que, não obstante o seu esforço, decorresse do facto de trabalharmos em condições que não permitem o exercício seguro da Medicina. Não obtivemos resposta. Em 2020 a pandemia veio pôr a descoberto e agravar uma carência já irreversível.

O nosso corpo clínico é constituído actualmente por 23 Pediatras, dos quais:

- 4 Pediatras em licença de maternidade/baixa por gravidez. Não houve substituição destas colegas;

- 3 Pediatras de baixa médica. Não houve substituição destas colegas;

- 1 Pediatra de licença sem vencimento. Não houve substituição desta colega;

- 3 Pediatras com horário reduzido;

- 1 Pediatra a exercer as funções de Direcção do Serviço.

- Dos 15 profissionais em exercício de funções actualmente a média etária é 53 anos. Estes Pediatras dividem-se em dois serviços, a Pediatria (composta pela enfermaria, consulta, hospital de dia e urgência de pediatria) e a Unidade de Cuidados Intensivos Neonatais, ambas com necessidade de assegurar assistência 24 horas por dia, todos os dias do ano. Ou seja, o Serviço comporta dois serviços de urgência com equipas distintas e que não se podem intersubstituir pelas especificidades das funções.

A face mais visível do problema coloca-se no Serviço de Urgência, onde actualmente apenas 5 Pediatras exercem funções que conciliam com a restante actividade que não pode igualmente ser negligenciada (consultas e internamento). O horário que legalmente dispõe para o Serviço de Urgência permite no total assegurar 6 turnos de 12 horas. Insuficiente para manter um Serviço de Urgência aberto ininterruptamente com 2 Pediatras como legalmente lhe compete, e como a resposta ao afluxo de utentes esperado no Inverno, em contexto de pandemia, com a existência de um circuito de suspeitos covid à parte dos restantes doentes, exige.

Escondido atrás deste está um problema maior, a viabilidade da Unidade de Cuidados Intensivos Neonatais que é suportada à custa de 4 Pediatras fazerem urgência quando pela sua idade já não o deveriam fazer, 1 que continua a assegurar turnos nocturnos, apesar de idade para dispensa dos mesmos, restando 4 Pediatras cujo horário permite assegurar no total 5 períodos de 12 horas de urgência, dos 14 períodos necessários para que a Unidade funcione em permanência. Sem reforço de recursos humanos, a Unidade pode fechar já a partir de 1 de Novembro.

É urgente, e peca por tardia, a atenção que o Serviço de Pediatria requer por parte das entidades competentes para que se preserve e renove.

A atitude tomada pelo conselho de Administração, de forma unilateral e com efeitos imediatos, foi divulgada em circular interna e em Comunicado de Imprensa e consiste na “restruturação temporária da Urgência Pediátrica”. Esta reestruturação consiste na criação de um “balcão de pediatria no âmbito do Serviço de Urgência Geral” e prevê que “o novo modelo contará com um médico pediatra ou, na sua impossibilidade, com um interno dos últimos 12 meses de formação e com prestadores de serviço com treino na área pediátrica”.

Esclarecemos que a “restruturação” consistiu apenas em “mudar o nome” do local onde são atendidas as crianças e colocar a sua direcção a cargo de um médico não Pediatra. Mudar a designação e passar a chamar “balcão de Pediatria”, diminui o nível de diferenciação do Serviço e torna legal o seu funcionamento sem Pediatra, à semelhança do que acontece já noutros hospitais do Alentejo.

Para a população, “mudar o nome” significa que em caso de situação emergente um dos seus filhos pode não ser atendido por Pediatra, pode ser assistido por um médico sem especialidade, que não obstante toda a dedicação que possa ter não conhece as especificidades das doenças de uma criança ou de um recém-nascido. Numa área geográfica extensa e socialmente desfavorecida, significa ter de se deslocar para poder beneficiar de cuidados, significa agravar desigualdades no acesso à saúde.

Para a população, “mudar o nome” significa retroceder mais de duas décadas, voltar aos cuidados existentes nos anos 90 e que tanto fizemos por melhorar.

Para os Pediatras, “mudar o nome” significa saber que não se trabalha em segurança, que pode não se conseguir prestar os melhores cuidados a uma criança ou vigiar em simultâneo as várias que tem a seu cargo. Para os jovens Pediatras significa ver no Alentejo um local onde não se evolui profissionalmente e onde não é atractivo trabalhar.

Para os 10 jovens médicos internos da especialidade de Pediatria em formação connosco, a quem prometemos um futuro, significa desinvestimento e o risco real de verem o Serviço perder a capacidade formativa e terem de completar a especialidade noutro hospital. Não voltarão.

Para os Pediatras que cá continuam, a esforçar-se e a dar o melhor de si para construir um Serviço, significa perder anos de investimento pessoal, científico, formativo e de relação com a comunidade.

Este manifesto surge como a tentativa derradeira para que seja prestada atenção ao Serviço de Pediatria e se tomem medidas urgentes e sólidas que tornem viável a sua sobrevivência e mostrem respeito pelos profissionais e utentes.

Évora, 11 de outubro de 2020,

Os Pediatras: Hélder Ornelas – OM 20270

Fernando de Almeida – OM 23452

Ana Serrano – OM 27129

Miguel Galrito – OM 27877

José Matono – OM 31095

Isabel Nabais – OM 33043

Maria José Mendes – OM 34214

Laura Martins – OM 40926

Sónia Antunes – OM 43018

Dora Fontes – OM 44913

Raquel Freitas Costa – OM 52745

Isabel Fernandes Joaquim – OM 28417

Carla Cruz – OM 33428

Mafalda Oliveira – OM 34819

Lia Ana Silva – OM 34673

Susana Gomes – OM 41987

Teresa Castro – OM 45789

Joana Gaspar – OM 49831

Patrícia Romão – OM 50203

Vera Almeida – OM 52019

Nídia Belo – OM 54550

Os médicos internos de Pediatria em formação do Serviço e que apoiam o Manifesto:

Teresa L. Almeida - OM 58760

Luís Norte Rodrigues - OM 58276 M

Inês Nunes Marques - OM 60068

António Bento Guerra - OM 61037

Catarina S. Gonçalves - OM 61093

Gabriela Botelho - OM 62319

Leonor Aires Figueiredo - OM 64482

Ricardo Domingos Grilo - OM 64876

Francisca Manoel - OM 65624

Isabel Vasconcelos Coelho - OM 66927

 

Nota do editor: A redação deste jornal decidiu pela publicação na íntegra deste manifesto, de forma a não alterar o seu conteúdo. Esta publicação pode ser relacionada com uma outra peça publicada por este jornal e que pode ser lida aqui.