21 Julho 2019      13:41

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Lolly-Madonna XXX (1973)

Qualquer um reconhecerá que Richard C. Sarafian não é lá grande nome para quem quer vingar num lugar tão dissimuladamente selecto (ou será o inverso?) como Hollywood, mas não foi por isso que a carreira de Sarafian, apesar de longa e…farta, foi actor e realizador entre 1956 e 2007, não chegou verdadeiramente a despontar.

Ainda assim, o realizador importa muito mais do que o actor, pelo que o período a fixar é o de 1962-1990.

O seu filme mais reconhecível, produzido em 1971, (ainda) é The Vanishing Point (um – primeiro e único e relativo – sucesso, e somente em segundas núpcias, meses após uma primeira estreia pouco auspiciosa). Filme com os defeitos e qualidades do costume na obra de Sarafian – que pelo menos sabe que para uma determinada época, seja ela qual for desde que os produtores e espectadores a reconheçam como sua (sem olhar para trás, os filmes de época apenas valem como simulação – veja-se o melhor filme de época de sempre, Age of Innocence, de Martin Scorsese, que mesmo inspirado num romance excepcional escrito por alguém desse tempo, vale-se de uma universalidade – fraquezas, fugas, liberdade desejada e inatingida, relações de poder, etc. –, que o faz pertencer a qualquer tempo), o cinema apenas pode ambicionar ser sintoma, talvez prenúncio seja melhor palavra.

Sarafian não é genial, sabe colocar a câmara, mas não edita ao mesmo nível. São os grandes temase o corpo da história que conduzem o ritmo, não a montagem. Mas, obviamente, também não foi essa a razão do seu insucesso.

Para além disso, nos seus filmes dos early 70´s, a metáfora é demasiado expressiva, o que não combina com a porção de pendor realista dessas obras, mas já combina melhor com os seus elementos líricos – são filmes como que divididos ao meio (não a meio) entre esses dois mundos, por assim dizer.

Dito e confirmado o anterior, houve um momento que o seu cinema foi verdadeiramente singular. Um instante de criatividade onde todas as regras de apreciação bruscamente se subvertem. O ano: 1973. O filme: Lolly-Madonna XXX (os três X referem-se ao símbolo para beijos no final das cartas de outro tempo e não a qualquer desregramento idealista ou expressionista ou impressionista ou rococó de cariz sexual).

Pode um filme imperfeito ser considerado uma obra-prima? Sim, um inequívoco sim. No que a arte e a vida têm de humano, i.e., se afastam do divino, claro que sim. Há por lá um espaço aberto à contradição que cada um ocupa como pode. Se o ocupar séria e profundamente, então a obra-prima é possível na imperfeição.

(Aos forçados e inibidos que ainda não viram o filme, uma sugestão: ler + sinopse)

Imperfeito porque – o quadro inicial, do qual vem o título do filme, é pouco verosímil e provoca rejeição, uma vez que – excluída a hipótese redentora da provocação – nos incompatibiliza com as personagens. O que não é justo nem para com elas nem para com o filme. Só muito mais tarde, no contexto do absurdo violento em que o filme se escora, se entende a tomada de posição dos Feathers (ou seja, porque mantiveram Lolly Madonna – Ronnie Gill cativa contra toda a lógica). Isto retira momentum ao filme, e apenas serve para lhe dar um começo – voz-off real e metafórica que soa a passar a mão pelo lombo do espectador, digamos. Talvez se Lolly - Ronnie aparecesse depois de algum reconhecimento pelos terrenos do filme, pudéssemos partilhar afinidade e humanidade na sua ligação às personagens sem que se sentisse o peso do tempo que passou como tempo perdido (20-25 minutos de filme em 103, convenhamos que são demasiados para que se possam deitar a perder).

Obra-prima porque – uma vez alinhados com o filme (não obstante o que já se disse, valha-nos o que se pode fazer em 80 minutos), a estranheza – desassossego, assombro, espanto, escolham o sinónimo que mais vos convenha, juntem-nos em delírio, não importa – começa a prevalecer sobre o absurdo. Há uma atmosfera de autofagia que num primeiro olhar faz lembrar O Anjo Exterminador, de Buñuel, e com esta é a segunda vez em menos de uma semana (a outra foi Climax, o último de Gaspar Noé). Não é o pedaço de terra que importa (pois nada de produtivo vemos fazer dele, enfim, serve para guardar porcos), mas a impossibilidade de a abandonar. Quem lá habita não teme perder solo, mas sim enfrentar o vazio de negritude que adivinha para lá do universo conhecido. Espécie de cegueira que arrisca pressagiar o que não vê, efeito religioso num filme que não devolve qualquer eco de fé reconhecível, não há uma única referência a qualquer Deus naquele estranho e equívoco universo de hillbillies. Há sonhos, mas apenas nos mais jovens, nos filhos. Reservas e reflexão de igual modo são apanágio desses filhos. Unicamente desses filhos. Os pais revelam-se figuras desconformes, obscenas, hirtas, abissais… Se existe um inferno que reproduz as relações entre seres de diferentes estatutos, Lolly-Madonna XXX é a sua alegoria perfeita – o facto de se tratar de pais e filhos só aumenta a medida do sorvedouro que acabará por os arrastar. Poucos filmes foram tão longe na exposição dessa quebra. E tão líricos na omissão da memória longínqua dessa terra primordial, cuja posse já nada significa de palpável, se é que alguma vez significou. Se algum nível de compreensão subsiste, é o do vazio de sentido na posse, expresso no olhar das figuras paternas – olhar distante, incapaz de se fixar a não ser pela violência física (Pai Feather) ou pela abstracção alheada, não menos violenta do Pai Gutshall. Vai dar ao mesmo. Ambos veneram filhos “mortos” e desprezam os “vivos”, ambos se acobardam quando agir se torna inevitável, ambos no Inferno dos Vivos depois de terem enviado os seus para onde caem os Mortos - há quem lhe chame Vale; outros, menos dados ao visualismo, Esquecimento.

Não recordo outro filme assim, que com tanta dor, lirismo e omissão poética desfaça tanto os mitos americanos da posse da terra e a família nuclear (que alguns confundem com a visão de Cristo, omitindo para si mesmos, afinal há quem consiga esse prodígio, que Cristo também é dor); enfim, quanto à terra, talvez Heaven’s Gate, de Michael Cimino.

Pela comparação precedente, como é bom de ver, esperava-o obviamente o fracasso de público e crítica (a crítica da época no liberal New York Times é particularmente demolidora e mal intencionada), pois certas coisas, para certas consciências territoriais, pura e simplesmente não se podem deixar passar.

Lolly-Madonna XXX, tão esquecido que hoje pode ser encontrado sob dois nomes (também como The Lolly Madonna War, o título do romance no qual se baseia), é o tipo de filme que só podia ser feito algures 1966 e 1981. E é, sem reservas, mesmo se encostado a um canto, uma das maravilhas dos 70’s da New Hollywood. Veja-se o casting, é tempo de salivar por um tempo que já não volta: Rod Steiger e Robert Ryan (os pais), Katherine Squire e Tresa Hughes (as mães), Jeff Bridges, Scott Wilson, Ed Lauter, Gary Busey, Randy Quaid, Joan Goodfellow (os filhos) e a estreante Season Hubley, como a imaginária Lolly Madonna, quatro anos antes de Hardcore, de Paul Schrader, onde haveria de dar corpo a uma das mais trágicas personagens que recordo.

 

Imagem de moviestillsdb.com