25 Março 2017      21:41

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LAURIE ANDERSON

"DESVIOS E RESPECTIVOS ATALHOS: FILMES, LIVROS E DISCOS"

Do Bowie restam cinzas. Resisti, prestei-me ao extravagante papel de senhor da alma que subitamente se perdeu e ficou sem rumo, até que o deixei ir. Teve de ser. Não é papel que me fique bem.

A vida prossegue, que é com quem diz: Príncipe morto, Rainha posta. Por um filme, regressei com a necessária firmeza a Laurie Anderson – e Heart of a Dog, o filme, é notável. Filme de proeza técnica / Filme de performance / Criação-tipo de Laurie A. Ainda mais: Síntese de uma vida já em perda pela perda de um animal de estimação, a morte da cadela de Laurie A. (pressuposto lógico porque budista, também perdição para este espectador específico e proveito da criativa em causa).

Laurie A. é e foi muito, mas nunca uma autora de canções em sentido estrito. Durante muito tempo (percebemos agora que durante demasiado tempo) ouvimos os seus álbuns como se assim fosse, entre o entusiasta e o analista, ou seja, construímos castelos sobre matéria não firme, examinámos reflexos sobre reflexos de espelhos côncavos com a minúcia do crítico. O planar no vácuo com sensação de queda que não permite cair para lado nenhum. E o que paira sem a possibilidade de queda move-se, caso se mova, sem a sensação de movimento. Por isso pouco lhe importa a velocidade. Porém não é assim para a distância, pelo menos na relação dinâmica com o espaço em volta, pois falamos de vácuo na perspectiva cosmológica.

Ver e escutar são indutores de compreensão, mesmo se da incompreensão, mesmo perante o vazio, mesmo se do que parece estar em falta no espaço imenso, e tendem a ser complementares, de modo que um filme de Laurie A. já se devia adivinhar como necessário para dar plenitude à sua obra. Se tal não sucedeu, então a culpa tem de recair no observador.

Heart of a Dog, filme-álbum-performance, epítome de um processo criativo único, pode ser resumido no seguinte: a percepção de uma área preenchida por ausência.

 

Imagem de newyorker.com