4 Julho 2022      11:41

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Katyn

Numa guerra, a verdade é a primeira vítima.

É da natureza dos mortais pisar ainda mais aqueles que caíram.

Durante o feroz conflito as forças que se opõem adaptam o significado usual das palavras à sua visão e objetivo e esquecem os factos.

 

O presidente de Smolensk, a 25 de junho de 2022, ordenou a remoção da bandeira polaca do monumento que comemora os mortos em Katyn porque "não pode haver bandeiras polacas em  monumentos russos, ainda menos quando o governo polaco se posiciona contra a Rússia".

Monumento russo a Katyn? O nome lembra-me vários eventos. O mais recente talvez um acidente de avião. Lembro-me pouco. Começo a procurar informações. Não faltam, graças à quantidade de documentos originais disponíveis de várias fontes na Internet.

Estamos em 2010: um voo militar estatal que transporta o presidente Lech Kaczynski e outros membros do governo polaco para Smolensk cai no chão durante a aterragem. Todos os 96 a bordo morrem. Os resultados das investigações russas e polacas são divergentes. O facto é considerado acidente causado por erros técnicos e a suspeita de sabotagem é considerada excluída.

O que é que Lech Kacynski ia lá fazer? Para homenagear, pelo septuagésimo aniversário, o monumento às vítimas do massacre de Katyn. Um dos grandes massacres realizados durante a Segunda Guerra Mundial. A lista é vasta, como esperado de um conflito que matou mais de 60 milhões de pessoas de várias maneiras e lugares, especialmente naquela região que hoje é particularmente significativa, que inclui a Polónia, a Alemanha Ocidental, a Chéquia, a Rússia Ocidental, a Bielorrússia e a Ucrânia. E Katyn está mesmo ali: Rússia Ocidental, perto da fronteira com a Bielorrússia. Em Katyn e nos seus arredores, o NKVD (Comissariado do Povo para Assuntos Internos) por ordem de Stalin executou entre abril e maio de 1940 mais de 22.000 oficiais polacos, políticos, jornalistas, professores, industriais que foram presos após a invasão soviética em vários campos na Bielorrússia e no oeste Ucrânia. Tratava-se de reduzir rapidamente a zero a classe dominante de um país que, com base no Pacto Moltov-Ribbentrop, de 1939, de não agressão entre a Alemanha e a URSS, levaria ao cancelamento e à divisão da Polónia e dos países bálticos.

 

O número de vítimas é impressionante e também a meticulosidade dos detalhes burocráticos (registro de identidade, da acusação - sempre a mesma, julgamento simulado) e do método utilizado (1 tiro disparado na nuca ou nas costas nas horas seguintes ao julgamento e sepultamento rápido do corpo, muitas vezes com documentos de identidade no bolso) do qual foi encontrada uma descrição detalhada.

Ainda mais impressionante, no entanto, é a história após o massacre:

- as execuções ocorreram, deliberadamente, usando pistolas de fabrico alemã e com munições alemãs que estavam na posse dos soviéticos;

- a descoberta das valas comuns é anunciada pelos nazis (que em 1941 romperam o pacto e invadiram a Rússia), na Rádio Berlim, em abril de 1943, e a responsabilidade é atribuída aos russos com forte intenção de propaganda. A partir dos documentos encontrados, os nazis sabem que a eventual descoberta de munições alemãs nos cadáveres retiraria a acusação contra os russos e a mantem em segredo;

- em 1943, por iniciativa da Alemanha nazis, foi criada uma comissão internacional de 12 especialistas com o patrocínio da Cruz Vermelha, que atribui a responsabilidade aos russos - que recusaram o veredicto. Churchill e Roosevelt, apesar das confirmações recebidas de investigações realizadas por militares dos serviços americanos e britânicos, decidem ignorar o fato, para não comprometer a necessária colaboração com a URSS;

- em janeiro de 1944, a URSS recapturou a área de Katyn, criou uma Comissão Especial de Inquérito, que rapidamente concluiu os trabalhos, atribuindo a responsabilidade aos nazis;

- nos julgamentos de Nuremberga de 1946, o chefe dos juízes russos Rudenko, usando falsos testemunhos, acusa os criminosos nazis do massacre, mas os membros americanos e britânicos do tribunal não o apoiam e a acusação é retirada;

- Em 1951-2, uma nova Comissão de Inquérito do governo dos EUA confirma a responsabilidade dos russos. Estamos em plena Guerra Fria, há mais em que pensar, e os criminosos entre os vencedores devem ser considerados cavalheiros;

- Outubro de 1990, Gorbachev reconhece publicamente a responsabilidade da URSS no massacre; em 1992, os arquivos russos passam a ser consultados com os documentos originais (parcialmente online de 2010), que o confirmam definitivamente, e também uma comunicação escrita de um executivo do governo da URSS para Khrushchev, em 1959, a quem recomendou que toda a documentação relativa a Katyn fosse destruída.

- 2010, Putin junto com o primeiro-ministro polaco Tusk vai a Katyn para homenagear os "caídos".

 

A primeira frase do título, pronunciada pelo senador americano H. Johnson em 1917, é atribuída a Ésquilo, o grande dramaturgo ateniense do século V aC; o segundo é retirado de sua obra Agamenon. A terceira pertence a Tucídides, historiador seu contemporâneo, e também se refere à guerra do Peloponeso. Os antigos gregos já tinham entendido tudo. Reescrever a história, falsificar factos, mortes e massacres não é novo nem atribuível aos meios de comunicação modernos.

 

 

Imagem de warsawinstitute .org

 

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Giuseppe Steffenino, natural do noroeste da Itália, está ligado a nós pela admiração que ele tem a Portugal e ao Alentejo em particular, onde, com a sua companheira, Manuela, foram salvos de um afogamento numa praia o ano passado. Aqui e ali a pandemia está a mudar a nossa maneira de viver e pensar. Esse médico com barba branca, apaixonado por lugares estrangeiros e um pouco idealista, interpreta este tempo curvo, oferecendo-nos os seus sonhos, leituras, viagens, lembranças, pensamentos, perguntas, etc.