20 Outubro 2019      16:43

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Joker

Finalmente!

E eis que do coração da indústria, em plena era da infantilização do espectador pela multiplicação de filmes dirigidos a adolescentes que, segundo os demiurgos de tal Ordem, e há quem solicitamente anteponha Nova a Ordem, não esperam complexidade nem desafio

(ironia primeira: fitas – afinal, a palavra certa no lugar certo – que procedem a maior parte das vezes do universo dos…super-heróis –  [longe vão os tempos de Indiana Jones e o Templo Perdido e Gremlins, os filmes que estiveram na origem da criação do PG-13 – definitivamente, não estamos a falar do mesmo]),

surge um filme que (deveria) impossibilita(r) a simplificação.

É inevitável começar assim, pois esta é a virtude que antecede todas as outras em Joker. Antes de ser um filme extraordinário, é um jogo de espelhos que (ironia segunda:) vale por uma ideia de resistência unipessoal que entra filme adentro, travestindo-se de uma outra bem mais apelativa, a sublevação colectiva.

Resistência que só pode ser vista como justa, a do pobre palhaço pobre que ousa não deixar cair os seus sonhos perante a brutal agressão, e termina em pesadelo. A afirmação pessoal pela violência homicida, não como forma de validação, mas no cumprimento dos cânones da tragédia clássica. Narração com o seu quê de cautionary tale, sim, mas sem a rigidez da precisão moral.

Sublevação que funciona a dois níveis, um literal, outro simbólico; a revolta da classe oprimida por um lado, mas também a de um cinema contra outro que apenas simula, de um cinema que aspira à autoria, por oposição a outro que representa a uniformidade (os filmes de super-heróis conseguem a extravagância de agradar a conservadores e liberais de igual modo), num tempo difícil para tais ambiguidades. A revolta dos pobres e oprimidos rapidamente se constrói como farsa, e por aí se perde. Mais que não seja, porque não há intenção. E convenhamos que salvar aquelas classes desfavorecidas, tal como nos são mostradas, provoca arrepios na espinha. É, portanto, na sublevação pela metáfora que Joker se eleva, afirmando-se como diferente de todos os que o precederam dentro do universo super.

Evidentemente, essas ideias, porque expostas em simultâneo, não indicam um caminho. Antes a sua ausência, digamos. O que pode magoar bem mais do que uma sucessão de pancadas. (Suspiro!) Nem todos são espectadores ideais, livres,…nunca foram, nunca fomos. Na verdade, a maior parte já nem sequer se concebe como tal – e hoje era tão fácil. Há um orgulho que se dissemina pelo excesso de pertença e pela não pertença por igual, que cheira e sabe mal, é pegajoso, para se reencontrar, enquanto regularidade percepcionada, numa televisão ou numa rede social perto de si… Joker tem o mérito de não ceder a nenhuma das ditas certezas em causa, nem sequer à mais óbvia.

Por exemplo:

|Quando Arthur confessa a Murray que foi ele que cometeu os homicídios no Metro, dadas as circunstâncias, pois estão num talk show onde se esperam piadas, Murray, apesar de visivelmente incomodado (ou expectante, pois o cheiro a sangue também é uma oportunidade em televisão), pergunta-lhe pela punch line. Caso houvesse uma, estava garantida a validação de todo um sistema por muito inapropriada que fosse a piada, ou o homicídio. Arthur encolhe os ombros, e diz com voz doce, “Não há nenhuma!”.

Não há piada, houve homicídio. Que é errado, por definição. Todos concordamos. Mas sem a garantia da norma, que certifica, não há rede de segurança. A...realidade [pelos olhos de quem a habita]  concebe a piada, e concebe o homicídio desde que com a caução da necessidade colectiva, que o justifica ou que o abomina - contudo, por ser percepção tanto quanto facto, não sabe o que fazer perante o (que vê como) absurdo trágico.

Se falamos de subversão em Joker, não é pela sua moral invertida, mas (ironia terceira  – e tanto que fica por dizer –:) pela ausência de punch line. A necessidade do Eu, talvez grandiosa, porventura trágica, não cabe no plano do Todo quando este já esqueceu que é uma soma de partes idênticas. O que pode muito bem ser a grande tragédia, e não é moral de história nenhuma.|

Por isso é tão desconcertante, por belo e abstraído e egotista e energético e espectacular e decadente, o único momento de pura catarse em todo o filme: a dança nas escadarias ao som de Rock And Roll (Part 2), de Gary Glitter. (Enfim, uma música de um pedófilo condenado, como elemento de ablução de um assassino em série em plena descoberta do novo Eu, que por acaso foi abusado em criança, e também em adulto, e que a populaça toma por um herói libertador, quando é, na sua forma (que deixa para trás a consequência), uma forma arrevesada e pomposa, porém de grande submissão aos sonhos de criança (i.e., inocente), de afirmação pessoal – Terá Todd Phillips pensado em tudo isto? Não importa, pensamos nós por ele.)

 

Imagem de poltronanerd.com.br