17 Junho 2018      12:46

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James Baldwin não é o meu negro, é o meu herói.

Acreditar que o mundo precisa de heróis é uma frivolidade que reduz o indivíduo a muito pouco, a quase nada, e que mais não faz que aceitar a desresponsabilização como fundamento. E sem individualidade responsável não há sapiens sapiens que nos valha. Nessa cama, a crer nas aparências, qualquer um se pode deitar sem sentir o peso da existência (iludindo as suas múltiplas consequências, quer dizer). O vazio total. Viver nesses termos pode ser leve, mas, bem vistas as coisas, de que serve passar todo o tempo que temos a contemplar o vácuo.

Coisa bem diferente é reconhecer um homem como herói quando ele nos aparece, pois existem. Um dos meus é o escritor norte-americano James Baldwin, falecido em 1984, aos 63 anos. Não é portanto um herói do dia-a-dia, ou do fim-de-semana, é a imagem de arquivo do meu herói. Não importa, pois é de palavras e da sua expressão que falamos.

A peça, de pendor realista, parece funcionar deste modo: o mundo resplandece e o homem, enquanto tal, na sua simplicidade, não aparenta ser grande coisa, pois só muito raramente faz grandes coisas. Alguns fazem, os milhares de milhões não. Contudo muitos tentam, têm ideias e julgam-nas resplandecentes (faz parte da sua – da nossa – humanidade), no entanto, como as expressar, como as oferecer ao maior número de pares? No binómio conteúdo / forma jaz a questão. Sim, como morta, pois o que vem a seguir trata do mais árduo dos empreendimentos, de a ressuscitar.

Um num milhar de milhões consegue então algo que é indistinguível do milagre. Chegar lá sem que se vislumbre qualquer possibilidade de erro. Numa máxima: não é que não seja possível fazer melhor, simplesmente não deveria ser possível de fazer.

Nesta presunção, James Baldwin é obviamente um herói. Escreve e as palavras que escolhe fecham o intervalo de probabilidade, não poderia ser de outra maneira. Quando se mostra, temos a imagem da fragilidade. A voz é aguda, sem nunca perder a verticalidade, voz musical, como se líquida, o som da lira de Orfeu decifrado e transformado em palavra viva. Privilégio de quem o ouve.

Calhou-lhe viver a encruzilhada do negro na América precisamente no ponto de inflexão, a luta pelos direitos civis durante os anos 50-60, copo que transbordou nos 60; de Medgar Evers, Martin Luther King e Malcolm X (X de homem livre), mas também de JFK e Lyndon Johnson e da Civil Rights Act, que o primeiro iniciou e o último firmou em 1964. Só que leis não mudam consciências e Medgar, Malcolm e Martin foram assassinados ainda na força da vida, nenhum chegou aos 40 anos.

James Baldwin, voz da consciência, ficou a falar sozinho. Pouco tinha do funcionalismo de Medgar, da intensidade de Martin ou do ímpeto belicoso de Malcolm. Para Baldwin, a vida em sociedade era uma perplexidade exposta, como uma fractura grave, mas que por estar à vista, tinha a vantagem de ser facilmente analisável. Ao contrário do que ocorre num buraco-negro, a sua singularidade é sempre nua. Baldwin, que observava e compreendia com a aptidão dos eleitos, mas que aparecia como o físico o impunha, franzino, doente, perdido. Refugiava-se no olhar. Olhar enorme, ecrã-espelho de dimensão estelar, onde a dor de um mundo que à sua volta poucos podiam compreender, o mundo da minoria segregada, desumanizada, se exibia em cores estranhamente vivas, ainda que difusas – se fosse pintor, seria é claro um impressionista. Isto antes falar. Chegado o momento, uma palavra, depois outra, o gesto como símbolo, maestro de uma sinfonia perfeita, a do seu âmago iluminado. O seu poder não era bélico, não persuadia, não arrastava pela força da razão; dois exemplos:

“I’m human, but not seen as one, they don’t know what to do with that… ”; “The question of sexual dominance can exist only in the nightmare of that soul which has armed itself, totally, against the possibility of the changing motion of conquest and surrender, which is love”.

Provinha de algo muito difícil de definir – e, não obstante, possível de conceber, adequando as forças do núcleo das estrelas a uma certa imagem, um centro emocional esmagado pela gravidade dos acontecimentos impossíveis de prever e controlar, mas suficientemente forte e com tempo para formar o equivalente a matéria cada vez mais pesada de dignidade.

 

Imagem de electricliterature.com