23 Junho 2019      16:26

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Vai seguir-te, jovem – a não ser que te mantenhas virgem, ou, se já em falta, ao menos te abstenhas …

Convenhamos que o cinema está habituado a viver continuamente em crise. A nenhuma outra arte foi sentenciada tantas vezes a morte. Sempre caminhou, na borda do abismo, e eram os melhores de entre os seus que incessantemente o apregoavam, não raras vezes com fragor, depois sorriso intelectivo que se lia no triângulo entre os cantos das bocas anormalmente grandes e o ponto onde o cimo do nariz encontra o vértice do ângulo obtuso gerado pelas sobrancelhas do pensador-criativo. Por conseguinte, aprendeu a caminhar nesse contexto, e nessas circunstâncias se fez grande e nobre. E, claro, para adultos. Até que…

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O Tempo, esse grande filho da puta que nos permite crescer e, em simultâneo, nos força a contemplar o instante da nossa morte nas mortes dos outros, faz o que pode, e isso quer dizer que nunca fará o suficiente. O cinema, como é óbvio, como conjunto ilimitado contido num conjunto infinitamente maior, quando muito pode aspirar a ser ténue reflexo. Logo, a espelhar de modo limitado o Tempo mediante circunstâncias que o transcendem e que, mesmo perante o detalhe da Arte (letra maiúscula, mas esqueçamos a dimensão potencial da dita), pouco ou nada derivam de outros propósitos que a tornam possível – Sejamos claros, não existe cinema sem a noção de orçamento; não se trata somente de inspiração, ou caneta e papel, pedra para esculpir, tela para pintar, trata-se de reunir uma equipa diligente que nunca será pequena, maquinaria e condições propícias, interiores ou exteriores, tudo sob rígido controlo criativo e preso por detalhes que obrigam a uma enorme precisão. Não há arte mais exposta ao erro do que o cinema, não há arte que torne o erro mais inadmissível do que o cinema. Albert Camus disse certa vez sobre os livros de Tolstoi, ‘a toda a hora vemos personagens que se levantam sem antes se terem sentado’. Na literatura, isto não impede a obra-prima, no cinema seria intolerável.

E o que fez o Tempo nos primeiros 120 anos de cinematógrafo? Esperou 80 e mudou a face do espectador típico – e este, nas últimas quatro décadas passou paulatinamente de adulto a pré-adolescente. A queda no abismo, sorvedouro de energia criativa pior que o maelstrom do conto de Poe, pois em vez de transformar os pré-adolescentes em adultos precoces, antes infantilizou todo um discurso, afastando os adultos (de então) do processo. 40 anos depois já não importa o volume da massa de carne ou a idade do espectador, deixou de fazer sentido falar do que distingue este daquele.

Esclarecido o anterior, convenhamos que o género que decaiu de forma mais acentuada ao longo desses anos foi o Horror (nos meus tempos de aspirante falhado a jovem turco dizia-se Terror), pois não há género mais susceptível à imbecilidade.

Por essa razão, enfim, por tantas outras – ainda que com quase 5 anos de atraso, mea culpa, que lhe resisti – saúdo um filme como It Follows, de David Robert Mitchell.

5 anos – risco que já não correrei com o seu último filme, Under The Siver Lake.

It Follows tem uma premissa simples, mas não é mais do que um desvio para um universo paralelo (expressão em sentido figurado, atenção). Alguém dorme com alguém, e a partir desse momento o primeiro alguém deixa de ser perseguido por uma entidade sobrenatural que toma múltiplas formas humanas, passando para o segundo essa condição. Se o segundo morrer, volta para o primeiro. É o primeiro vírus que permite reversão e cuja consequência é única e abertamente sobrenatural na história do cinema? Sim, que recorde. O sexo é a única forma de passar o vírus ao próximo incauto sedento. Quanto à entidade, não anda depressa, não corre, não viaja de carro ou avião, simplesmente caminha em passo normal, demorando o tempo necessário. Monstro indefinível, não hesita e não desiste. É monstro dos monstros.

Sabemos que a vertigem é assassina, mas não nos é dada qualquer razão para tal. A perturbação é o acontecimento. David Mitchell observou os Mestres com atenção e percebeu o que havia a perceber. Se em The Birds, de Hitchcock, invasão é apenas invasão entre entes que não se reconhecem em termos de comunicação, um vírus também não explica porquê, muito menos um vírus que activa mecanismos sobrenaturais. Vemos o que acontece ao perseguido quando é apanhado pela entidade uma única vez – uma forma humana destroça um dos jovens numa simbiose eléctrica e abertamente sexual, tem o aspecto da sua mãe. Uma outra personagem, a protagonista, a dado momento é perseguida pelo seu pai. Ai de nós se o tentarmos explicar.

Estamos perante pós-adolescentes entregues a si próprios. Os pais não aparecem, a não ser, como vimos, como reproduções sinistras. O que se esconde atrás do espelho? Um paraíso latente onde jovens podem ser e fazer o que lhes apetece? Não. Nada disso. Se quisermos, a suspensão infernal no crescimento dos jovens na sociedade moderna, com o cinema como espelho. Aos jovens não é permitido crescer livres, pois, como ao cinema, não lhes é permitido errar. A supressão do desejo, o que se lhes pede, é tudo o que se queira mas de modo nenhum a salvação.

Até que decidem que já chega – ripostam, decidem atirar a matar, vá-se lá saber contra quê, e, mais do que tudo, dois deles fazem amor, inequivocamente amor, e seguem em frente sem olhar para trás…

A sequência final, depois de um campo / contracampo que faz lembrar outros tempos, num outro universo possível, é a representação de um profundo absoluto que o cinema poucas vezes tentou e só raramente, muito raramente nos deu (assim de repente, talvez o final de The Straight Story, de David Lynch, e / ou a cena da (e na) prisão de Jake La Motta em Raging Bull, de Martin Scorsese, aqueles uivos e murros e gemidos que se colam à memória para sempre, a consciência que explode e então se resigna, a venerabilidade possível). Digno e trágico por igual. Os dois jovens a caminhar de mãos dadas, expectantes, em silêncio, como se sugados para um lugar que é também um olhar interior que ambos partilham, como se dividissem um sonho a meias (sonho de amor, sonho de liberdade); talvez ainda perseguidos pelo inominável, porém já não importa; estão prontos, afinal que outra coisa significa estar livre. Finalmente livre.

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A densa atmosfera do filme teve como referência o trabalho fotográfico de Gregory Crewdson (como é exemplo a foto do artigo).

 

Imagem de lartenvalise.files.wordpress.com

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