30 Janeiro 2016      22:57

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A ILUSÃO DO DIREITO À EDUCAÇÃO

Que fazemos nós, humanos emaranhados na sua própria humanidade ou na falta dela, aqui neste globo do qual pouco compreendemos e o qual descuramos como se nós mesmos dele não dependêssemos irremediavelmente? Que soberania, inteligência soberba detemos para que dividi-lo, dividirmo-nos, nomear-nos, doar rótulos e adjectivos contraproducentes, na sua maioria, seja legítimo e absolutamente verdadeiro? – Qual de nós, ser superior, digníssima criatura consegue realmente fincar o pé no chão e não duvidar da sua verdade (ainda que não o exponha)?

Nós, jovens, pensamos muito nisso. Nós, jovens, passamos vários dias a pensar quem disse que a vida deveria ser levada de um determinado modo, num caminho comum e ritmado, acompanhado por hordas de outros jovens que se corroem com a ideia de que Einstein estava demasiado correcto e que a tradição cultural educativa está, crescentemente, demasiado falhada. Contornam-nos as perguntas, abafam-nos os protestos, etiquetam o nosso sarcasmo de falta de educação quando deveriam ter a perspicácia suficiente para o classificar de revolta e no final são ainda capazes de nos congratular de sortudos pelos direitos que nós temos que outros não têm. – Direitos como a escolaridade e a educação que, supostamente, são gerais e comuns a todos os jovens, mas que analisados com bisturi e lupa são apenas o embuste que desculpa o disfarçado elitismo português.

É verdade sim, meus senhores, é verdade que o bom português se julga digno de elite e de respeito instantâneo como se fosse esta uma particularidade da sua personalidade e não um valor que se conquista. E mesmo quando é um valor que foi conquistado, as nossas prioridades na avaliação desse valor são tão desacertadas e bacocas quanto a ideia de que a educação é para qualquer jovem a grande oportunidade da sua vida, banhada num mar de rosas e em dificuldades equivalentes venha este de que berço vier.

O berço é, por isso, a palavra-chave de que não nos contam nestas lengalengas quando nos querem entusiasmar para o estudo e o trabalho – É, no seu geral, uma situação muito agradável até chegarmos à escola um dia e compreendermos que a filha do director da escola tem, por magia, uma nova oportunidade para realizar aquele teste em que falhou porque, pobre menina, estava com uma indisposição injustificável, mas indisposição. Ou quando um trabalho pode ser apenas realizado em computador e enquanto os meninos abastados conseguem, no cómodo e ameno ambiente da sua casa, terminar o dito trabalho no espaço de um dia, o pobre que não tem outra solução senão despender tardes e tardes num local público com acesso á tecnologia necessária enquanto ao seu redor rodam conversas, por vezes gritos, gargalhadas despreocupadas. Estes são os cenários dos quais ninguém nos fala quando nos enchem da coragem para o estudo e para a promessa de um futuro brilhante. Lá em frente espera-nos, nas palavras de outrem, o estatuto. No entanto, esse outrem, esconde-nos que não é apenas lá em frente que o estatuto importa. Que o berço importa. Porque o berço importa mais do que o mérito no país em que eu vivo e no país em que eu vivo nunca ninguém se importa connosco ao ponto de perguntar porque é que não viemos do berço de ouro ou quantas tarefas tão duras quanto a espessura do ouro tivemos que ultrapassar para chegar onde estamos.

Neste país onde o governo injecta dinheiro em universidades e colégios privados quem sofre as consequências são os alunos que frequentam os estabelecimentos públicos. São esses alunos que não têm um apelido do tamanho de uma ferrovia, ou não tratam os pais por você como se a mãe não tivesse parido o menino, ou não têm, desde o momento do seu nascimento, uma conta choruda no banco que lhes vai permitir frequentar as estirpes mais selectas e avant-garde da sociedade mesmo que sejam uns idiotas chapados. São esses alunos que escalam, com mãos desnudas, uma montanha íngreme e ficam impávidos quando os outros são levados ao colo, com pompa e circunstância, e ainda são admirados, não pelo caminho que fizeram pois outros fizeram-no por eles, mas pelo local onde estão.

O dinheiro move o mundo e se não estamos do lado de quem o tem, ou finge ter, estamos condenados á força do nosso corpo e á nossa coragem para que os nossos sonhos se realizem. Mas quando para um sonho se realizar é necessário roubar do sonho dos outros algo está muito errado.

Em três anos de estudo académico que fiz, embora traga várias lembranças positivas, trago também e muito mais demarcadas as lembranças da robustez psicológica que necessitei ter para ultrapassar a injustiça que vive nesse tal de direito que todos temos: o da educação. Levantava-me todos os dias pelas seis da manhã feliz por ter boleia para a universidade que não fica na mesma terra onde moro para depois ouvir as queixas dos meus colegas que se levantavam pelas 9:55 porque tinham que acordar tão cedo para aquilo. Chegava a casa pelas oito da noite tendo que fazer do meu serão um momento de pesquisa e trabalho enquanto que eles, que tinham a tarde toda no dia seguinte, repetidamente, me pediam ajuda porque não haviam feito as tarefas. – Confesso, por falta de vontade e cansaço, também eu me queixava muitas vezes. Também eu tinha uma vontade imensa de deixar as tarefas para lá e, finalmente, dormir. Mas eu não tinha nenhum estatuto, nenhum berço de ouro ou um desses grandes apelidos que me permitissem falhar.

Porque é isso que todas essas características permitem: a falha. Funcionam como o passar da mãozinha pela cabeça, uma mariquicezinha, uma desculpa que está protegida por simplesmente e só o dinheiro dos papás.

Quando falamos de abandono escolar ou universitário, desenganem-se meus senhores, não é de delinquentes e extraviados que falamos. Falamos destes alunos que, por serem tratados desde logo como delinquentes e extraviados, por não terem como exibir as mais recentes modas das mais recentes marcas, por não estarem ao nível imaginário, aparente e repugnante destas falácias da honra com pernas são imediatamente ostracizados. Muitas vezes humilhados e ignorados, coisa que, demorada e veemente, magoa até o mais valente.

E lembremo-nos, falamos de crianças e jovens, ainda em formação relativamente á sociedade e á sua organização, relativamente a si mesmos e às suas capacidades. Crianças e jovens esses a quem nós, compactuantes com a política elitista dos meninos do papá, dizemos: tu nunca vais ser ninguém porque não tens o que é necessário para o ser. Assim se rouba um sonho para alimentar outro. Outro sonho que, de tão fácil que é, para o jovem deixa de ser sonho e passa a ser ego e o tal estatuto. Um ego e um estatuto, também eles, comprados.

Antes que mo diga, caro leitor, riposto já dizendo que não, não está nas nossas mãos lutar contra todo o sistema educativo e académico. Não está, muitas vezes, nas nossas mãos encontrar uma alternativa como uma bolsa de estudo porque estas têm demasiadas alíneas e não contemplam o que de mais importante precisamos contemplar: a realidade humana.

Tenho ouvido inúmeros indivíduos criticarem aqueles que necessitam de uma bolsa de estudo ou apoios para estudar como se na verdade compreendessem o que é passar por todo o processo de aquisição de uma bolsa. Não existe a intimidade pessoal quando se pede uma bolsa de estudo – os documentos devem atestar todos os pormenores mais ínfimos e particulares do agregado familiar. É necessário até que outros afirmem por nós que somos quatro a viver numa casa, que temos dificuldade em pagar as contas ao final do mês, que existem momentos em que temos que decidir entre atrasar uma conta ou podermo-nos alimentar. É necessário que sejamos os mais coitadinhos possível aos olhos do governo para que tenhamos acesso a uma bolsa de estudo.

E atenção, não acho errado de forma nenhuma que se necessite averiguar a real necessidade de uma bolsa de estudo, mas quando existem ainda pessoas que a utilizam para viajar nas férias ou para um Iphone, será que estamos a fazê-lo da maneira correcta? – Porque aqueles que querem e precisam mesmo dela para estudar acabam por se acanhar quando lhes tocam nas fraquezas monetárias, alimentados por uma sociedade que lhes diz que não são suficientemente importantes, mas os outros dormem sobre o assunto e o que importa é o seu Iphone.

Resumindo, caro leitor, consegue compreender quanto sofre uma pessoa que necessita de uma bolsa de estudo para efectivamente poder estudar? Só depois de lhe atestarem que a sua vida é um desfile de privação e que não serve para no futuro ter o mesmo sucesso que o António Maria, lhe dão realmente a bolsa.

Não podemos, portanto, continuar a analisar os alunos e as pessoas por números e ideias preconizadas preconceituosas. Não podemos encolher os ombros, dar uma risada, e achar que “eles lá sobrevivem”. Não podemos refastelar-nos na nossa posição cómoda e ser egoístas ao ponto de olharmos para a educação como só e apenas uma questão de aproveitamento ou não aproveitamento. Devemos sim tomar tempo para perguntar “porquê?”. Porquê o fraco aproveitamento, porquê a falta de vontade, porquê a rudeza e a indiferença que no fundo, não é indiferença mas um movimento de defesa básico do ser humano.

Acima de tudo não podemos continuar a dizer aos jovens que a educação é um direito para todos enquanto não conseguirmos garantir a equidade do nosso ensino.

Não somos só números nos seus bolsos, somos pessoas que todos os dias dão um pouco mais de si. Está também na hora que nos consigam dar um pouco mais daquilo a que “temos direito”. Nós, jovens, pensamos muito nisso.

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