O título pode ser um pouco controverso e eu confesso não ser um profundo conhecedor da matéria. Passaram dez anos desde a classificação do Cante como Património Imaterial da Humanidade. Trata-se de uma manifestação cultural imediatamente associada à nossa região, que reflete, em certa medida, um modo de vida muito peculiar, uma identidade muito própria.
Na sequência desta celebração, registei várias reações ao que supostamente está a acontecer ao “Cante”. Muitos acham que pouco ou nada foi feito para salvaguardar esta herança cultural, outros acham que está adulterado, outros consideram que as inovações ou novas “roupagens” roubaram a essência daquilo que é a tradição.
Os mais “puristas” (sem nenhuma conotação pejorativa) consideram que há muitos grupos de cante, mas que não são verdadeiramente cante, por incluírem instrumentos musicais ou outras sonoridades, não refletindo a sua originalidade. Outros ainda defendem que dentro do Cante, há muitos Cantes, dependendo da área geográfica. Reconheço que é sobretudo no Baixo Alentejo que a tradição está mais enraizada e onde acontecem sempre manifestações espontâneas nas tabernas, nos encontros de amigos, nos petiscos e em diferentes comemorações. Mas isso também acontece noutras partes do Alentejo, nomeadamente mais a norte.
Será que o Cante, tal como o conhecemos, está em processo de mudança? Podemos falar de uma metamorfose do Cante? Corremos o risco de extinção dos grupos tradicionais? O que trouxe de novo a classificação da UNESCO? Estamos a perder oportunidades para preservar o Cante tal como o conhecemos?
Talvez sejam demasiadas e complexas questões.
Na minha opinião pessoal, penso que tem sido desenvolvido um bom trabalho junto dos mais novos e das comunidades escolares, no sentido de eliminar um certo preconceito que existia em relação a este tema. No meu tempo, só quem cantava eram sobretudo os mais velhos, os que tinham um passado duro ligado ao trabalho agrícola, ainda com muitas marcas da repressão do Estado Novo.
Lembro-me de ser bastante novo e de ouvir na Amareleja, com o meu pai (foi com ele que aprendi a diferença entre o ponto e o alto e a colocação das vozes), grupos de amigos a cantarem, por entre um copo de vinho, recordando outras calendas, porventura mais difíceis, mas que deixaram esta herança coletiva como uma marca do Alentejo, que nos deixa “em pele de galinha”.
Essa realidade hoje talvez tenha mudado. O cante está disseminado um pouco por todo o Alentejo. Houve renovação de grupos, criação de outros, aumento dos corais femininos e a associação de artistas de grande projeção ao “cante”, o que de certo modo até tem permitido a sua internacionalização. O levantamento sociológico e caracterização dos diferentes corais, a realização de exposições e estudos sobre este tema, que também estiveram na base da candidatura apresentada, são ferramentas fundamentais para compreender melhor este património singular e absolutamente excecional. Sem dúvida que há uma nova valorização desta arte. Temos a obrigação de a manter viva!
Penso que o caminho que tem sido seguido tem sido bastante positivo, também com o envolvimento das autarquias. Se mais a sul esse trabalho tem sido feito com maior visibilidade, não creio que seja justo que haja tentativas de apropriação do “cante” ou da sua pureza, da sua autenticidade.
Quem não for conhecedor do cante, provavelmente não fará uma análise técnica detalhada sobre o papel dos diferentes intervenientes e provavelmente só valorizará a afinação, a indumentária e a projeção das vozes.
A discussão que se tem mantido é mais ao nível da tradição que se perdeu ou que estará em mudança. Cada um puxa a brasa à sua sardinha, como se costuma dizer.
Enquanto manifestação cultural, é inevitável que haja transições e prováveis adaptações aos novos tempos que vivemos. Talvez essa seja também uma forma de captar mais adeptos e seguidores, levando o cante para outras paragens e novos horizontes. O cante saiu do Alentejo e essa é uma realidade objetiva. A reflexão é benéfica, mas não devemos ficar presos a um passado supostamente mais autêntico, esquecendo que novas abordagens podem trazer benefícios, sem se esquecer a essência. O cante será diferente de Alentejo para Alentejo, mas nessa diversidade pode estar também a riqueza. Como alentejanos, devemos estar orgulhosos disso.