8 Abril 2017      12:16

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AS FIGURAS DE CERA

"PARALELO 39N"

O tempo passa a fugir ou a correr, como preferirem. As coisas que o tempo ajuda a passar a fugir ou a correr não são nem mais nem menos do que um pequeno lago cheio de água que seca no verão e se enche no inverno. Com as primeiras chuvas vêm as primeiras vidas a nascer lá dentro. Os girinos vão crescendo e mutam-se para outra coisa. As pequenas poças de água são fonte de vida.

Na aldeia próxima do pequeno charco, Martinha, habitando uma casa rude e degradada, era uma figura estranha lá do bairro dela. Não devia ter mais do que seis casas aquela rua. Eram todas diferentes umas das outras. Nenhuma delas se assemelhava a ter sido construída pelo mesmo arquiteto. Surpreendentemente, tinham sido desenhadas pelo mesmo, cada uma em dias diferentes da semana. Eram por isso, a casa da segunda, a da terça, quarta, quinta e sexta até ao sábado. O espaço do domingo estava vazio. Cresciam lá grandes casas. Era para ser a casa do arquiteto, mas o pobre homem morreu no sábado à noite e não conseguiu já desenhar mais casas.

A casa de sábado era a da Martinha. Tinha sido contruída há tantos anos que ninguém se lembraria quando, não tivesse o ano gravado lá por baixo das telhas que se partiam ora sim ora não. Martinha era louca. Louca como o vento norte movendo areias de um lado para o outro. Louca como mais inteligente dos génios, sem que tivesse a genialidade de uma cientista. Era uma criadora. Despertava a curiosidade de toda a vizinhança sem que os vizinhos a conhecessem tão bem assim. Da casa saíam fumos diariamente, como se uma caldeira estivesse sempre a trabalhar. Lá de dentro também, um cheiro a cera muito forte. Ninguém sabia o que se passava, toda a gente falava como se soubesse. O que aliás é frequente.

Martinha só saía de casa para ir buscar as mercearias e pouco mais. Hortaliças e tal estavam na parte de trás da casa, um quintal onde semeava feijões, couves, tomates, alfaces, batatas e beterrabas. Vivia sozinha. Consumia pouco. E de dentro de casa, um cheiro a cera. Nunca a comida se sobrepusera ao cheiro da cera que saía do quarto. Martinha vivia sozinha. Ou pelo menos assim pensavam todos os vizinhos a quem a vida dela fazia muita confusão.

Não era verdade que estivesse assim tão solitária. Pelo contrário, Martinha tinha a casa cheia de figuras, pessoas de cera, que na sua loucura genial, ou genialidade louca, construíra nos últimos vinte anos. Tinha em todas as divisões, famílias inteiras que viviam com ela. Vestidas a rigor, em trajes de diversas épocas, em posições sentadas e de pé, até deitados nos quartos suplentes, as pessoas olhavam cada passo de Martinha e não falavam. Comunicavam com ela e só com ela, a única pessoa que até aí viram.

Na rua, a curiosidade, em casa, monólogos prolongados. Matinha falava com todos em casa e tinha, na sua cabeça, resposta de todos eles como se fosse verdadeira gente. Eram, na sua cabeça. Não o eram na realidade. Mas não, sendo, eram também.

Curioso pensamento que cria personagens na nossa ideia e curiosas vidas que são moldadas pela passagem do tempo como figuras de cera. Na vida de Martinha, aquelas figuras eram tudo, numa palavra, inertes e indiferentes à passagem do tempo. Para Martinha passava, e tinham sido já muitos anos que chegaram ao fim um dia. Querem estas palavras eufemisticamente dizer que Martinha morreu. O seu último respirar foi partilhado com as figuras de cera, sem emoções visíveis nos rostos estáticos. Ninguém chorou.

Dias depois, após a ausência na mercearia, os vizinhos entraram pela primeira vez em casa e encontraram gente. Morta, como as figuras de cera, Martinha descansava. Morreu a curiosidade também.  Nesse dia, passou a ser uma casa vazia, sem Martinha e sem as figuras de cera.

 

Imagem de bagagemclandestina.blogspot.pt