14 Outubro 2017      10:48

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FERVER EM POUCA ÁGUA

"PARALELO 39N"

Fazia mesuras o dia inteiro. Andava meio tonto metade do dia e dormia a outra metade. Havia quem dissesse lá na cidade grande que era maluquinho. Talvez fosse. Não se sabia muito bem se era por causa das mesuras que fazia o dia inteiro, se porque andava tonto meio dia ou se porque dormia a outra metade. Ele não se chateava muito com isso. Nem se importava lá com as coisas que diziam dele. Fazia mesuras. Antes de se tornar meio tonto metade do dia era artista de circo e tinha andado por tantas terras como letras do alfabeto multiplicadas por vinte. Bem, tinha andado por muitos lugares. Tinha caminhado muito. Tinha-se fartado de trabalhar no meio circense. Era um grande artista. Um artista de circo. E fazia mesuras. Mesuras todos os dias.

A vida do senhor dava uma história. Tão grande e tão preciosa como um punhado de diamantes encrustados em colares de ouro e de prata. Alívio era o seu nome. Quando nasceu, nasceu num lugar chamado Bruteira. Os habitantes dessa localidade eram conhecidos como brutos… pelo que todos eles ganharam o apelido de Bruto, inscrito nos seus registos de nascimento. Procurarei contar a história de Alívio Bruto até ao momento em que passou a andar meio tonto e a dormir a outra metade. Desde pequeno que tinha barbas e usava o cabelo cortado à tijela. Confesso que eu próprio já usei o cabelo assim, quando era pequenino.

Havia, na minha terra, o Ti Manuel João, que morava além do Malhanito por quem eu tinha uma imensa admiração e a quem me juntava sempre que podia para ouvir as histórias. O Ti Manuel João gostava de me cortar o cabelo à tijela. Significa que me punha, literalmente uma tijela na cabeça e me cortava o cabelo em volta e ficava com uma tijela na cabeça. A minha mãe é que não achava piada nenhuma. Nos dias em que cortava o cabelo, eu e o Ti Manuel João comíamos sopas, feitas por ele, numa tijela. Claro que não aquela em que me cortava o cabelo. Era feliz assim. Mas a história não é sobre mim. É sobre o Alívio Bruto que tinha um penteado igual ao meu. Com o passar dos anos eu mudei o meu. Felizmente, penso hoje. O Alívio não mudou. Também, que eu saiba não se arrependera de manter assim a barba e o cabelo.

A adolscência de Bruto foi um alívio para os pais. Apaixonara-se pelo circo e pelas artes circenses e não lhes dava trabalho nenhum. Visitava-os esporadicamente quando o seu trabalho passava pela aldeia dos Brutos, a Bruteira. Era um orgulho ver as artes e as mesuras do Alívio. Ele rodava, saltava, caía dentro de um pote de água sem se molhar, andava em cima de um trapézio, dançava com o leão, fazia de espelho com o macaco e no fim era palhaço. Acabava com as mesuras. E as pessoas abriam a boca, de espanto. Tinham medo antes de as coisas acontecerem. Tinham medo durante os acontecimentos e ficavam ainda com medo depois. Era o circo do medo e o medo do circo.

Alívio ficava aliviado quando acabava o espetáculo. Apesar de lhe dar alguma adrenalina o desenrolar das coisas, o nervoso miudinho era sempre uma constante na vida. Andou no circo, a fazer mesuras e com nervoso miudinho muitos anos. Aí mais ou menos aos trinta, a crise chegou ao circo e as portas fecharam-se. Ou melhor, desmontou-se a tenda. Alívio ficou sem emprego, sem amigos, sem família, sem objetivos traçados, sem o alimento diário que lhe era dado e passou a ser alguém invisível, embora visto por toda a gente.  

A única companhia que lhe restava era uma galinha. Não a dos ovos de ouro mas aquela que ficou desempregada também. Embora a apreciasse imensamente, era ela que lhe dava o alimento todos os dias. Comia ovos. Só ovos. E tinha de pedir, de porta em porta, que o ajudassem e cozinhassem os ovos. Pedia que fervessem, num tacho que levava, ao lume, os ovos. Dizia, ferve em pouca água. São ovos e fervem em pouca água. Nem toda a gente era bondosa e nem toda a gente compreendia a necessidade. Além daqueles que, um dia lhe davam comida, Alívio e a galinha, a mais sacrificada no meio das mesuras, enquanto acordados, ali andavam.

Certas pessoas ofendiam o pobre homem que só queria cozer o ovo. Certas pessoas pareciam da mesma localidade que ele. Eram Brutos. E na resposta, como um espelho, tornava-se bruto ele também. Diziam-lhe então para Alívio, tu é que ferves em pouca água, riam-se e fechavam a porta ao homem já irritado. E, por tanta repetição, chegou até aos outros lugares todos a fama do homem que fervia em pouca água. Creio que foi daí que nasceu a expressão ferve em pouca água e Alívio continuou, até ao fim dos seus dias, a fazer mesuras e a dormir a metade do dia em que não andava tonto. 

 

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