23 Novembro 2017      11:20

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ESCULTURA DE SÁTIRO

No Museu Nacional Frei Manuel do Cenáculo repousa um Sátiro do tempo dos romanos. Os Sátiros são figuras da mitologia grega e romana e com isto já se percebe que vou falar de Évora romana. O Sátiro de que falo é uma elegante escultura em mármore branco, de um Sátiro em repouso, uma figura masculina, deitado sobre uma pele de pantera com a cabeça, cabelo encaracolado e orelhas pontiagudas, apoiada no braço direito e a perna direita cruzada sobre a esquerda, nu mostrando o sexo. Data do século I–II d.C. com 1,59 m de comprimento e 62 cm de espessura. Deu entrada no Museu em 1964, depois de ter sido descoberto como entulho nas obras da cozinha do Convento São João Evangelista, Pousada dos Loios. Isto leva-nos também a falar de entulho, do extraordinário entulho da época dos romanos que é o subsolo da cidade de Évora.

Este Sátiro que aqui vive repousado é o testemunho do tempo imperial, ao tempo de César Augusto, quando Évora era a cidade romana de Ebora Liberalitas Iulia no extremo ocidental do Império Romano, um território ocupado e conquistado a grupos indígenas, divididos em pequenas comunidades com economias locais de autossuficiência, encurralados em pontos altos, desconfiados e dependentes dos ciclos da natureza. Rapidamente foram dominados, conquistados e absorvidos pelo novo modelo administrativo de Roma e construídas as cidades e as vias que as ligam até à capital do Império. Na Évora romana, construiu-se uma cidade nova ao cânone do tempo, com um templo romano de culto imperial, termas e balneário público, casas com frescos, linha de muralha e até um possível teatro, intuído mas ainda não confirmado e tudo o mais que faz uma cidade romana, tudo no chão de Évora, como entulho, em paredes reaproveitado ou saqueado para fora da cidade, tudo entulho, tudo lixo, tudo Arqueologia.

Da cidade Romana de Évora conhecemos e podemos visitar o templo Romano no ponto mais alto da cidade, as termas romanas no edifício da Câmara Municipal de Évora, as casas romanas com frescos pintados e uma linha de muralha romana que estão no edifício da Casa de Burgos, visível pela rua da Alcárcova de Cima e, resultante de escavações arqueológicas e outras investigações históricas, conseguiram-se identificar duas zonas de necrópole, uma na saída da cidade de Évora em direção a Beja pela rua de Viana e mais recentemente outra zona de necrópole, também fora da cidade, na zona da Escola Gabriel Pereira, identificada e escavada no seguimento das recentes obras de remodelação e modernização.

Mas a cidade romana de Évora não é só o Centro Histórico, o que já se conhece e tudo o que está enterrado e por conhecer. A cidade ligava-se com o seu território como hoje o centro se liga com as suas freguesias. E nessas freguesias está a outra parte da história romana de Évora, como por exemplo a villa romana da Tourega ou o importante sítio arqueológico de São Manços de onde se recuperou uma importante e bela escultura de um Efebo nu, em bronze que também está exposta no Museu Nacional Frei Manuel do Cenáculo, digna de uma visita dedicada. No primeiro caso trata-se de um sítio arqueológico escavado, classificado, desaproveitado, desprotegido, esquecido por um município que não faz o que lhe compete enquanto gestor de coisa pública, nem o que lhe corresponde como cidade Património Mundial da Unesco, ali na Tourega, como no Centro Histórico tudo está por fazer bem. Unam-se as Cidades Educadoras, as Escolas, as freguesias e os comités da candidatura de Évora a Capital Europeia de Cultura 2027 e junte-se a Direção Regional de Cultura do Alentejo, o Museu Nacional Frei Manuel do Cenáculo e os cidadãos e juntos, todos, trabalhemos o património que é de todos e que queremos conhecer e preservado. O outro sítio é a villa de São Manços, onde os desafios são igualmente elevados e de todos. São Manços é, em toda a sua extensão, um sítio arqueológico, diferente da Tourega, porque ali podemos ver estruturas de casas, das termas, paredes levantadas, negativos de compartimentos, etc., mas possivelmente mais importante, pela extensão dos achados, pela importância das peças encontradas como este Efebo de bronze exposto no Museu. Aqui é importante que as pessoas de São Manços, quem ali vive, trabalha, governa, conheça o seu património e o compreenda, para saber reconhecer a importância de comunicar um achado furtuito de uma peça, de cerâmicas ou pedras quando trabalha a terra, escava um buraco ou faz obras nas suas propriedades. O sítio arqueológico de São Manços permanece enterrado e de certa forma protegido se respeitarem as medidas de salvaguarda e acompanhamento arqueológico quando se fazem obras de raiz ou de remodelação de casas ou quando se licencia a plantação de uma vinha ou de um olival, mas esta necessidade imperativa só é compreendida se conhecerem a razão, a importância, que tem um entulho extraordinário, tão antigo e valioso como o que constitui o nosso chão e isso só se consegue trabalhando com a Escola e com as populações programas de Educação Patrimonial, divulgação e fruição do património do concelho, das freguesias, dos lugares.      

Esta cidade romana que ainda hoje nos acondiciona foi uma cidade do seu tempo, com termas, com teatro e com cultos exuberantes a imperadores distantes. A escultura do Sátiro encontrada no Convento de São João Evangelista, muito próximo do templo romano, denuncia uma cidade rica, culta e de elite a seguir a moda de César, o culto a Dioniso e a prática de cerimónias Báquicas. Os Sátiros integravam o cortejo de Dioniso em cerimónias orgiásticas e bacanais. Eram considerados génios da natureza, imaginados a dançar nos campos, a beber com Dioniso, nus e dotados de enorme virilidade perseguindo Ménades e Ninfas. A sua representação foi aos poucos perdendo o seu aspeto bestial de meio homem, meio bode para passar a ter pés em vez de cascos, um sexo repousado, permanecendo uma cauda e as orelhas pontiagudas para lembrança do ser de natureza como no caso deste Sátiro do Museu.

O Sátiro de Évora diz-nos que o prazer e o culto da lubricidade tiveram lugar aqui na cidade, o efebo de São Manços também nos mostra o gosto dos homens pelo corpo nu de outros homens. Às cidades romanas não é alheio o sexo e o prazer, ele é da ordem do quotidiano, mas também é celebrado, promovido, divulgado. Só assim se explica a profusão de representações de cenas eróticas e de sexo que vemos nas cerâmicas, na escultura e em pinturas do período romano. A compartimentação dos espaços das cidades, a atribuição de significados à utilização desses espaços é reveladora da sua importância e dimensão. Templos, termas, esculturas de sátiros e efebos de bronze são provas da grandeza da extensão do património arqueológico deste território e inequívocas razões para considerarmos e respeitarmos o que nos foi legado com efetivas medidas de proteção e valorização do património arqueológico de Évora. Com tantos testemunhos dispersos, tantos achados isolados, tanto trabalho por fazer, parece estar na hora de assumir reinterpretar a cidade romana de Évora. Podemos começar por aqui, na sala de arqueologia do Museu Nacional Frei Manuel do Cenáculo e começar por perguntar Onde está na cidade de hoje esta cidade romana de que nos falam estes objetos?

 

O Museu Nacional Frei Manuel do Cenáculo tem entrada gratuita aos domingos e feriados até às 14h para todos os cidadãos residentes em território nacional. O texto e fotografia são da exclusiva responsabilidade da autora.