21 Julho 2018      12:50

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Escrevantar

Escrevia sempre ao levantar. Acordava cedinho, por volta das 6:15 da manhã, todos os dias. Era uma coisa que fazia parte de si, da sua rotina. Imaginava-se como um inventor. Inventava como um imaginador. Imaginava coisas que não existiam e escrevia-as entre as 6:30 e as 7:00 da manhã. Nessa meia hora tudo acontecia.

O escritor que escrevia ao levantar não tinha computador nem canetas BIC, escrevia com canetas antigas, daquelas que se carregam com tinta. Poucas assim existem hoje. Já ninguém escreve como antigamente. Perdeu-se o gosto de poder deslizar a ponta da pena no papel. O escritor que escrevia ao levantar nunca o perdera. Mas só escrevia durante essa meia hora. Era estranho o senhor. Quem o conhecia desconhecia os seus hábitos e não sabia nada daquilo que escrevia. Nem a sua mulher conseguia ler os manuscritos. Um dia, quando morresse, talvez se tornasse um escritor conhecido e reconhecido. Até lá, escrevia ao levantar e receberia a alcunha de escrevantar.

Escrevantar faz-nos lembrar uma alcunha como esgravatar. As galinhas esgravatam o dia inteiro. Buscam coisas no chão, não sabem bem o quê. Alimento para a moela. O escritor que só escrevia meia hora por dia, ao levantar, o que esgravatava no papel, em busca de palavras e de ideias, passava tempos nisto e isso tornava-o quem era. Tinha passado a ser a sua identificação. A maneira como o conheciam. Fazia aquilo meia hora e depois passava a ser uma pessoa normal.

No fundo, meia hora do dia que para ele era a mais importante parte do seu dia passou a identifica-lo. Passara a ser definido por uma ínfima parte de si que muito poucos conheciam. Apenas o conheciam por causa de um ritual que tinha ao escrever. Todos os dias, não falhando um, colocava-se à janela e escrevia lá numa mesa antiga. Cá de fora, porque ficava no rés-do-chão, toda a gente via o homem com o seu semblante pesado a escrever. Abria a janela e, religiosamente, cuspia cá para fora às 6:47. Era um homem de hábitos.

Logo, passou a ser conhecido como o Escrevantar. O facto de se chamar Rodrigo Carvalho de Abrantes Simões e Castro e ser de linhagem nobre, deixou de interessar aos que tinham menos canetas e menos folhas de papel escritas. Alguns dos que os chamavam Escrevantar nem sabiam escrever. Ele sabia e escrevia sobre eles. Inspirava-se durante todo o dia nas personagens que deambulavam pela rua para escrever no dia seguinte. Dizia a mulher que, não sabendo de nada, imaginava que tivesse já uns dez romances escritos. A chatice é que não tinha ordem de os ler. Acabava por ser um casamento sem partilha de bens, nem os adquiridos. Neste caso, ela adquiria as folhas e a tinta. Ele escrevia, mas só durante meia hora. Ao levantar. Por isso lhe chamavam o escrevantar.

Na rua dele, que era a principal do sítio onde morava, toda a gente o via e toda a gente o cumprimentava àquela hora da manhã. Quando começava tinha ainda uma vela acesa que se ia extinguindo à medida que o dia ia avançando e o sol subia no ar. A última história, especulava-se, era de amor. Toda a gente gosta de falar de amor. Aqueles que já o conheceram, porque gostam de ver refletidos os seus sentimentos. Aqueles que o buscam porque se julgam mais próximos dele e aqueles que nunca o viveram porque o gostariam de imaginar, de poder ter ideia da sensação do que é.

 

Escrevantar, ao escrever e ao imaginar, amava a cada minuto as palavras e o pensamento, as ideias e as imagens que a sua cabeça inventava, durante meia hora. Nessa meia hora, era feliz, como era no resto do dia. E assim seria, durante tantos dias, durante tanto tempo. O tempo, em meia hora passa a ser intemporal, dizia ele e repetia a sua companheira dessas intemporalidades. Na rua, as galinhas continuavam a esgravatar enquanto o homem escrevantava.   

 

 

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