19 Março 2016      00:04

Está aqui

ERA GUARDA-REDES

"PARALELO 39N"

Isto aconteceu há alguns anos atrás. Liceu de Beja, por volta das 08:30 da manhã. O toque de entrada ecoava em todo o liceu, emanado das estridentes campainhas que marcavam a hora de entrar na sala. Agitada, a turma de 9º ano rodeava a porta, à espera que chegasse o professor. Iam ter matemática durante 90 minutos. Rui não se interessava muito por disciplina nenhuma. Era um aluno mediano em todas as disciplinas e nunca tinha excelentes notas nem nunca baixava dos cinquenta por cento. Tinha, porém, uma paixão que não deixava nunca de o acompanhar. Sonhava noite e dia com desporto, mais especificamente futebol. O seu quarto enchia-se de posters de jogadores antigos e atuais que seguia no twitter, no instagram, no facebook e até no line. Conhecia todos, as suas histórias, o seu universo. Rui amava futebol como amava os seus pais e o irmão mais pequeno. Andavam sempre às turras, mas isso era natural, diziam os pais quando explicavam aos amigos o porquê das birras de um e de outro. Rui tinha de ter as últimas sapatilhas, aqueles calções daquela marca famosa que não citarei para não ter de citar a outra, também famosa e concorrente, nem a outra que faz concorrência às duas últimas.

Sendo Rui tão interessado e apaixonado por futebol, sonhava jogar a avançado. O seu sonho avançava com a idade e queria ser o primeiro, o ponta de lança na equipa da turma, na da escola e, se possível, na do clube local. Rui já jogava em todos. E jogava todas as semanas. Enquanto os amigos passavam o tempo a conversar, a discutir coisas próprias da idade, a falar dos momentos que passavam, daquela miúda ou da outra, de futebol também, mas em pouca quantidade. Rui colecionava os cromos dos avançados da equipa do coração – o Sporting. Os amigos eram do Benfica, mas não havia discussão nem devia haver. Cada qual é cada qual e teimar nem sempre leva a resultados.

Rui jogava todos os fins-de-semana, mas não se sentia ainda realizado. Não sabia o que fazer para atingir o seu sonho de passar a avançado. Jogava à baliza. Era o guarda-redes em todas as equipas. Não era o seu sonho nem o queria ser no futuro, mas desde os amigos, passando pelo professor até ao treinador, todos pensavam que Rui era o melhor na baliza e estava-lhe destinado esse posto. Tinha jogado sempre a guarda-redes, jogava e iria jogar sempre na mesma posição.

Passados alguns anos, já não vivia em Beja, já não estava no Liceu. Mantinha alguns, poucos, infelizmente, amigos dos tempos de escola, mas tinha chegado à profissão dos seus sonhos. Era jogador de futebol e daqueles famosos que chegam à primeira liga e às ligas internacionais e até jogam pela seleção. Tinha realizado o sonho em metade. Nem sempre conseguimos aquilo que sonhamos. Muitas vezes acabamos por deixar o sonho a meio e adaptarmo-nos ao que nos é possível alcançar ou, outras vezes ainda, são os nossos sonhos que estão ligeiramente ao lado daquilo que é o nosso talento, verdadeiramente. O sonho do Rui era ser avançado, o seu verdadeiro talento era ser guarda-redes. Ganhou o talento na luta entre os dois e acabou por ver a sua vida preenchida, nas capas de jornais, nos posters que outrora tivera, mas de outros, e o seu exemplo era agora o de outro Rui que vivesse em Beja, em Bragança ou mesmo na Horta.

Esta é uma história que se imaginou em Beja, há muitos anos. Não é verdade, mas poderia bem ser. Afinal, há em cada um de nós, uma dose proporcional de sonho e de talento.

 

Imagem daqui