19 Novembro 2017      11:38

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“EN CONSTRUCCIÓN” UM FILME DE JL GUERIN

"DESVIOS E RESPECTIVOS ATALHOS: FILMES, LIVROS E DISCOS"

En Construcción (2001)

O cinema de Guerin, com o passar do tempo como dístico recorrente, assenta numa busca que, resumindo, redunda sempre ou quase sempre numa distância que tenta eliminar (segundo o próprio, entre si e os seus fantasmas). É o que podemos apelidar de sistema-Guerin (pequenos luxos que não podem ser desaproveitados – jamais). Começa com uma ideia de, precisamente, reconstrução, depois avança pelo objecto (ou conteúdo, não importa, pois a pretensão é fazer tese, abrindo caminho a uma perplexidade nunca verdadeiramente exposta, ficando implícita) a reconstruir. Apresenta, discute como, mostra, para cair na distância entre a ideia e a sua efectivação; depois faz o que pode para eliminar essa distância.

Sintomático como, naquele que é porventura o seu filme mais conhecido, Comboio de Sombras (1997), [Um homem saiu de casa certo dia para um passeio com a sua câmara de filmar e desapareceu misteriosamente. Foi dado como morto algum tempo depois. O filme pega nas imagens de arquivo dos filmes familiares desse homem e mostra-as no filme com o álibi da homenagem aos primórdios do cinema. Mas não é só, pois há o mistério do desaparecimento; bem como os que não se anunciam.] é o cinema que vai completar o que as imagens de arquivo (ok, não menos cinema, simuladas, como é o caso para a formulação da sua hipótese primária – a homenagem aos princípios do cinema –, ou não) deixaram por resolver, dando pistas e, enfim, quem sabe se, pelo menos, resolvendo o mistério do desaparecimento, do que levou à morte (devemos dizer que somos espectadores com sorte, pelo que nos parece que não o fez nem poderá fazer; talvez não passe de um querer sem desígnio, uma ilusão pré-programada; como a vida, obrigada pelos genes a continuar). Mistério que sublima ao mostrar as belas imagens coloridas feitas no presente do filme, o actor substituindo o homem, a cor substituindo o preto e branco gasto, no limite do observável, aniquilando-nos com a sua beleza (a das imagens, beleza consensual pois ainda que subjectiva permite consensos em torno da cor, do contraste, da cintilação), reconstruindo em filme para que possamos finalmente reconhecer (quem sabe se legitimar). O cinema, não como substituição do real, mas perfeitamente integrado no real, como parte do que tomamos por real; no fundo o que, como espectadores ideais, sempre desejámos quando nos sentamos em frente do ecrã. Ou não é sequer desejo, é ontologia. Ou necessidade.

Ou simplesmente instinto subversivo. Ou ainda irreprimível vontade de não acordar / não adormecer, pois vai dar ao mesmo.

O que podemos dizer é que acerta na mouche quando devia falhar, pois o raciocínio é auto-referencial, tudo começa (imagens de arquivo simuladas) e acaba (cinema artificializado por actores e cor) no cinema; não é o cinema que pode resolver, pois para tal tinha de sair de si próprio. Não sai, mas sabe colocar-nos na orla, sem massa que nos atraia e portanto sem queda possível.

Neste filme (En Construcción) não é muito diferente apesar de ter de parecer diferente, uma vez que o que é apresentado para reconstrução é palpável. De resto na sua figuração emblemática: prédios de habitação. O mistério primário é outro, o dos homens e mulheres que lá viveram.

Ali viviam pessoas – quem eram? Sabemos que já era habitado no tempo dos romanos, porque lhes vimos os esqueletos logo no início. Mas não só. Houve outros antes da demolição. Bem mais próximos temporalmente, memória que quase se pode tocar (caso uma memória se possa tocar e temos a certeza que pode, as nossas como exemplo). Sabemos quem são. Vemo-los a toda a hora no prédio em frente, também a aguardar demolição, como um reflexo da obra. Estamos a assistir ao filme da vida deles. Seres talvez reais. Ou talvez não, já que lhes foi apontada uma câmara. Não importa. Portanto: não vida real por oposição a vida imaginária, simplesmente o olhar totalmente inclusivo do cinema.

A certa altura dois dos personagens discutem História vista pelos olhos do filme que passou na televisão na noite anterior. Elemento de real como qualquer memória, que vemos sempre fidedigna. No fundo, o que sempre quisemos fazer da imagem cinematográfica.

Além do mais é um filme erigido no acaso - digamos que começa por ser um filme sem guião, que aguarda. O que é uma vantagem. Veja-se a frase seguinte, dita pelo emigrante marroquino lá para o fim do filme: "A natureza sussurra a Barcelona através da neve." Frase cuja inspiração parece resultar do facto de ser uma frase de guião, mas por outro lado impossível de escrever para uma personagem sem cair no abismo do ridículo, porque a cair no extremo, no imperdoável da escrita tratando-se do filme que trata. Então como criar uma rotina que a torne verosímil? O acaso, que fez com que a personagem a dissesse como se vinda daquele espaço onde apenas habita a verdade – o fundo da absoluta intimidade –, tornou-a sublime.

Frase de Guerin (de leitura dúplice): “se és fiel à realidade, esta nunca te atraiçoa. “

Outra: “filmes de fantasmas em duas partes – uma primeira parte sob o plano do Sol; outra, da Lua.”

 

Imagem de alcances.org