17 Dezembro 2016      15:30

Está aqui

E SE ALEPO FOSSE AQUI?

Ninguém que conheça uma criança deve passar sem se deter nesta imagem.

Quem é? Onde é? O que fez? Nenhuma das respostas a estas perguntas justificará a imagem que vê.

Centenas de imagens e vídeos foram libertadas e partilhadas por pessoas prestes a morrer durante a “tomada de Alepo”. Guardo um vídeo em especial, pelas semelhanças comigo, o vídeo de Abdulkafi Alhamdo, pai, professor, jornalista e ativista – rebelde aos olhos do regime.

Abdul gravou uma mensagem em vídeo quando as milícias de Al Assad estavam a cerca de 300 metros e a tomada da cidade era eminente – e com ela a sua, quase certa, morte – e referiu que só esperava que alguém pudesse fazer algo pelas pessoas de Alepo, pela sua filha, pelas crianças. Mostra o seu descrédito pelas organizações internacionais e pelas Nações Unidas. Revela que, os rebeldes, só queriam uma coisa: liberdade. Será este sírio assim tão diferente de nós?

O conflito sírio - que está na origem das grandes vagas de emigração que têm assolado a Europa – é algo que não é fácil de compreender e em que não há inocentes a não ser as crianças e aqueles que tudo o que desejavam era a felicidade, o bem-estar, a Liberdade.

Em Alepo, esta semana, celebrou-se a libertação da cidade às mãos dos rebeldes – pelo menos aos olhos de quem retomou a cidade, o exército do regime de Bashar Al Assad, a quem o mundo ocidental considera ditador. De um lado da cidade, sírios celebravam sobre cadáveres de outros sírios. Que libertação existe quando é um ditador que conquista e quando a conquista se faz com a celebração da morte?

O problema sírio não é só sírio; envolve toda uma rede de interesses aos quais o mundo ocidental não é alheio, nem inocente. Era uma revolta popular pela liberdade, mas já é muito mais que isso e quem pagou foi a população. A Síria é reflexo de um mundo onde os interesses económicos e as redes poder se misturam perigosamente com o esquecimento da dignidade humana.

Direitos Humanos foram atropelados, trucidados, na tomada desta cidade, mas se pensa que o que se passa na Síria só diz respeito aos sírios está enganad@. E basta ver o caos humanitário em que a Europa mergulhou para tentar fazer frente às vagas de refugiados. Entre os grandes culpados do problema sírio está grande parte do mundo: russos, americanos, turcos, sauditas, franceses, israelitas…

Para que se perceba que o difícil está em perceber: a Turquia – acusada de financiar o ISIS – ataca o ISIS na Síria. Nas mesmas investidas, ataca os curdos e as milícias do YPG que, por sua vez, também combatem o ISIS. Os Estados Unidos apoiam os curdos, os mesmos que a Turquia – aliada dos EUA na NATO – combate. Depois do abate de um caça russo pelos turcos, a Rússia começou também a armar os curdos sírios para combaterem os turcos. Mas os curdos, além dos turcos, combatem também contra Al Assad, o principal aliado russo no Médio Oriente.

Oficialmente, a Rússia bombardeia a Síria para acabar com o ISIS, mas organizações internacionais dizem que estão a bombardear os rebeldes sunitas, apoiados pelos Britânicos e Americanos, que justificam o apoio a estes por combaterem o regime de Al Assad que tem por aliados também os terroristas libaneses do Hezzbolah e dos xiitas iranianos.

No entanto, logo ao lado, no país vizinho, o Iraque – alvo de duas investidas ocidentais - todos estes apoios mudam. Estados Unidos, Grã-Bretanha, curdos, iranianos e iraquianos combatem o ISIS e apoiam o governo xiita contra os sunitas.

Relembrem que, parece que o ISIS - tal como outras organizações terroristas – terão tido apoio e ajuda na criação por parte do ocidente, nomeadamente o EUA, o que não nos torna muito diferentes de Al Assad.

Na Síria, os EUA, a França, a Grã-Bretanha, a Turquia, os rebeldes sírios e os curdos combatem o regime de Al Assad, apoiado por Iraque, Irão e Rússia. E todos combatem, supostamente, o ISIS.

Em Alepo, os rebeldes - apoiados pelos EUA -  combateram grupos terroristas, os o Al-Nusra, que tiveram origem na Al-Qaeda, grupos que são, alegadamente, financiados por Qatar e Arábia Saudita, apesar destes dois países serem aliados dos norte-americanos. Os países da região negam que que financiam também o ISIS para combater estes ex-Al-Qaeda.

Al Assad é inimigo do ISIS, apesar de se desconfiar que lhes compra petróleo. Quer americanos, quer britânicos, nunca atacaram Al Assad. E o que se conclui é que esta rede parece montada para ninguém perceber realmente nada e que se pode ler e ouvir a verdade e o seu contrário, ou vice-versa. No meio da neblina de pó que chega da destruição síria, fica a questão: Alepo foi libertada?

Independentemente, e à margem, milhares morreram. Outros milhares fugiram. Foi criado o caos na Síria. Foi criado o caos na Europa.

À margem, milhares preparam-se para celebrar o Natal. Milhares estão preocupados com os presentes que vão comprar ou receber.

À margem, milhares esquecem que Alepo é aqui ao lado. Esquecem que a evolução e o mundo digital aproximou o mundo físico. Ignoram - ou fazem por - que vivemos todos juntos na mesma casa e que somos todos seres humanos; que hoje é Alepo e amanhã pode ser Beja. Estamos mais próximos em tudo, mas cada mais longe de todos.

Como disse o líder da igreja católica, o papa Francisco, “Estamos perto do Natal: haverá luzes, festas, árvores iluminadas, presépios… mas é uma farsa. O mundo continua a fazer as guerras. Não escolheu o caminho da paz.”

 

Luís Carapinha- Diretor

 

Fotografia de Rami Jarrah de pbs.twimg.com