15 Dezembro 2018      09:58

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Dona Verdade

Aquilo que dela se apoderou era tão grande, tão grande que quase perdeu a visão. Era algo que não conseguia identificar de onde surgira mas que a deixava num estado tão negativo que parecia um túnel negro que jamais teria fim. Para Dona Verdade, a luz ao fim do túnel era um conceito que não existia.

Na vila onde morava, já há muito que ninguém falava com ela. Não valia a pena. A Dona Verdade vivia num casulo. A sua família já não se importava com as ofensas que a ela lhe faziam todos os dias. Aquilo que feria Dona Verdade tornava-se rotina e ninguém parecia ficar perturbado no bairro daquela cidade.

A única pessoa que se importava com o estado da Dona Verdade era o filho, Verdadeiro e a filha Verdadeira. Pois, falta de imaginação. E, depois do momento em soube que a aldeia conspirava contra ela, querendo que ela se mudasse dali, de armas e bagagens, a Senhora Verdade, perdeu as forças e recolheu a casa, quase depenada, se penas tivesse. Era triste, tudo isto é triste. Poderia ser uma história irónica se fosse mentira. Mas não era. A senhora sentia-se tão sozinha, tão isolada, como que acurralada num turbilhão de emoções.

Os vizinhos olhavam-na de lado, como se fosse diferente. Ninguém na aldeia já lhe prestava atenção. Passou a ser invisível e, pior eram ainda aqueles que a viam e a troçavam. Desejava, depois de tanto e tanto, ser apenas invisível. Desaparecer. Talvez fosse tudo da sua cabeça. Talvez as coisas que via fossem só produto da sua imaginação, talvez não fosse perseguida. Na via onde vivia, morava numa casa de esquina, sem vizinhos dos lados. Só com os filhos podia olhar nos olhos, só com eles se sentia fora da depressão.

Certo dia, decidiu consultar um psiquiatra, forçada pelos filhos. Na vila não havia. Teve de ir a outra localidade, longe. Era melhor assim, longe dos olhares daqueles que ainda a viam. Assim não haveria falatório. Só os filhos sabiam e foram eles que a levaram, num Renault 19, daqueles antigos. Era o que tinha. Dona Verdade era uma pessoa antiquada, em todos os aspetos. A decoração de sua casa mostrava isso mesmo, as roupas. Dir-se-ia que D. Verdade era uma pessoa antiga. Os filhos, ao contrário de tantos outros, não viam a mãe assim e preocupavam-se com o seu bem-estar e com o seu papel na sociedade onde estava inserida. Tinham esperança de que o sorriso da sua mãe fosse uma realidade. Um médico poderia ajudar.

A consulta com o médico durou mais de duas horas. Quase se assemelhava a um interrogatório à Verdade. Dali, o médico tiraria as suas conclusões e ficaria a conhecer as verdadeiras razões e raízes de tal depressão. OS filhos estavam impacientes, cá fora. Queriam a mãe de volta. A mãe que mantinha as coisas no seu mundo no caminho e ordem corretos. A mãe cujo alimento era a sua força de viver.

Amavam, a mãe, Verdade, acima de tudo. Amavam-se como irmãos e eram verdadeiros. A porta do médico abriu-se e, aquela mulher vestida de negro, parecia iluminada. O rosto estava aberto, como que luminoso. A conversa franca e aberta com o psiquiatra tinha-lhe feito bem. Passaria, deste modo, a não ser invisível. Tratá-la-iam com o respeito e consideração que a todos merecia. Acreditava nisso, consequência da conversa do médico.

Aos filhos, apenas uma frase que resumia tudo. Agora já sei quem sou. Conhecia-se melhor do que nunca e sabia que os motivos que a levaram à depressão não valiam a pena. Verdade voltara a ser. E os filhos estavam felizes.

 

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