22 Setembro 2019      11:24

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Dolor y Gloria de Almodóvar

Quando se olha para a já longa carreira de Pedro Almodóvar fica a estranha sensação de que só funciona bem se encostado a dois limites: a disfunção e a 'confessionalidade'. Limites, enfim, extremos que cansam facilmente. A disfunção porque facilmente entra numa espiral de repetição que lhe retira a robustez, mesmo que se mantenha uma conjuntura favorável ao ideário em causa; e a confissão porque facilmente se esgota, uma vez que desabe no sorvedouro do ego, quando os outros sentem que já se disse tudo, mesmo que para o sujeito (o referencial) muito ou quase tudo tenha ficado por dizer (a eficácia da confissão depende sempre de uma dinâmica forte, i.e., por outras palavras, da relação de proximidade com o contexto externo).

Daí a estranha sensação que a obra de Almodóvar provoca, pois na aparência funciona em sentido contrário. É precisamente quando Almodóvar tenta o passo para a autoria, distanciando-se de si e do seu sentido de caos muito próprio, parte intrínseca, coice rebelde da sua homossexualidade expansiva à mui conservadora Espanha do início dos anos 80, que os seus filmes falham (veja-se com alguma atenção filmes como Tacones Lejanos, Kika ou Os Amantes Passageiros, e compare-se o resultado com, por exemplo, Que fiz eu Para Merecer Isto?, A Lei do Desejo, Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos, Tudo Sobre a Minha Mãe e La Mala Educación (quiçá o seu melhor filme até Dolor y Gloria)).

Dolor y Gloria, depois de uns quantos tiros falhados (com o já referido Os Amantes Passageiros e La Piel Que Habito à cabeça; o primeiro, comédia vazia em que apenas se confunde o momento engraçado disperso com ter piada ao longo de 90 longuíssimos minutos, talvez o filme menos conseguido da filmografia de Almodóvar, e o segundo, homenagem falhada ao cinema de horror série B, que ainda por cima tão bons resultados havia dado num dos filmes ali citados, Les Yeux Sans Visage, de Serge Franju, tornando a fragilidade de La Piel…, por comparação, demasiado evidente), é o regresso do melhor Almodóvar confessional.

É certo, sempre que Almodóvar regressa à infância e, por supuesto, à vilória onde pela primeira vez (se) sentiu a força do desejo, está no caminho certo. Também quando a elipse é uma porta aberta para a sinceridade ardente, quando o beijo irrompe sôfrego (e quantos de nós assistiram ao primeiro beijo gay em A Lei do Desejo), quando a dor se sobrepõe à glória da forma mais conveniente (e convincente), ou seja, a cor viva prevalece na intimidade que não esquece onde tudo começou – a cal branca da interminável parede contínua da aldeia como o ecrã onde mais tarde a dita dor se esbaterá numa memória eventualmente construída e alinhada pelas conveniências da ficção, que assim a tornará lenda.

Resumindo, eis a estrutura perene do classicismo; ponto nevrálgico que Almodóvar, por mais quedas que tenha dado e venha a dar, com Dolor y Gloria definitivamente atingiu.        

 

 

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