17 Janeiro 2016      10:49

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DEPOIS DA SERTRALINA

A verdade, caro leitor, é que nós não estamos prontos para este mundo. A verdade é que nos vamos preparando enquanto o mundo muda e nos muda e por vezes, a maior parte das vezes, nos deixa a tontas com questões para as quais o mundo não nos deixa ter tempo. Geralmente descobrimos tarde demais que essas mesmas questões não são mais que retóricas, toda a configuração de um beco sem saída em que ficamos horas, dias ou até anos analisando as fissuras nas paredes e medindo a capacidade das nossas pernas para subir o muro. – Por vezes, a maior parte das vezes o muro é alto demais e a solução não passa por subi-lo ou ultrapassá-lo. Passa por, e dolorosamente, desconstruí-lo.

Hoje quero que imagine que estou sentada á sua frente numa mesa da sua cafetaria favorita. Peça um chá ou um café e prepare-se para uma conversa daquelas que nos aborrecem muito mas que simultaneamente se alojam na nossa mente durante muitos anos para que um dia, quando necessário, sejam úteis. Mais que úteis, sejam a medida da compreensão.

Tenho, durante muitos anos, prestado atenção às campanhas de sensibilização para com as doenças degenerativas (muito bem realizadas e de extrema importância, sem dúvida) e, por muito que os doentes testemunhem acerca daquele momento iminente em que se vive experienciando a morte justificando que ninguém pode sequer fazer ideia do que é a sensação, eu encontro imensos paralelos com outras doenças das quais ninguém quer falar. Aquele tipo de doenças que são evitadas como as pessoas que nos pedem gorjetas ou os voluntários que nos pedem ajuda – Com um olhar desdenhoso, atravessado e disfarçado. Um sorriso suave e amarelo de quem quer dizer alguma coisa formato penso rápido mas que não consegue encontrar palavras ou a coragem certa.

Eu encontro muitos paralelos com as doenças mentais, principalmente a depressão, a que, sem vergonha lho digo, conheço melhor. Sem vergonha porque os estigmas de uma sociedade doente não podem servir-me. Os estigmas desta sociedade doente, onde não dizemos a uma pessoa com cancro “Anima-te!” mas o dizemos repetidamente (e até nos aborrecemos com a pessoa) a quem sofre de depressão, não podem servir e, sobretudo, não devem servir a quem lida diariamente com uma doença psicológica.

Pergunta-me agora, caro leitor, mas está a comparar o cancro com a depressão ou a esquizofrenia? Estou sim. Estou sim e sem medo de ser reprimida e ofendida como já o fui antes. Estou sim porque só as pessoas como eu, que passaram ou passam ainda por uma depressão, sabem o que é viver com o peso de um muro que é esse muro que não se pode saltar e nunca se pode ignorar. – Pesa demasiado. A rocha arranha a pele e arranha a vida. Arranha, indubitavelmente deteriorando, a capacidade para a vida de quem a carrega.

Um dia acordamos, pomos os pés no chão frio e repentinamente ouvimos apenas a nossa respiração lenta – as paredes do quarto deixaram de ser aquele branco puro, mas antes são um amarelado desmaiado, os objectos tornam-se pontos de referência do olhar parado e nada mais, as vozes tornam-se distantes, tão distantes quanto o peito que, nesse momento, atravessou já as nossas costas, se enrolou sobre si mesmo e deixou no seu lugar a apatia mais assustadora de sempre. A depressão chegou como chega um dia de chuva a meio do Verão: as explicações são confusas e têm tendência a acumular-se muito tempo antes, as expectativas deixam-se arrumadas na gaveta menos revisitada da casa e a parafernália dos céus começa a estender-se no interior do crânio. A partir desse momento existem dois mundos: aquele em que nós vivemos e aquele onde os outros vivem. Para onde quer que vamos ou onde quer que estejamos o tempo do nosso mundo é muito mais lento e suspenso- as pessoas á nossa volta vão para o trabalho, voltam do trabalho, sorriem-nos, dizem-nos meia dúzia de palavras nem bem nem mal intencionadas mas nada disso chega realmente a nós.

É a diferença entre estar submerso e emerso. A água deixa-nos pairar naquela monotonia quase bela senão fosse a falta de ar e a urgência para subsistir enquanto lá fora os outros riem e as suas gargalhadas nos chegam como numa memória distante que acabamos por desaprender. Depois vem o pânico e o choro. A incapacidade de controlar o nó na garganta e o cansaço extremo. – Não aquele cansaço que se sente no corpo depois de um longo dia e que nos embala num sono mais descansado. Não. O cansaço da depressão é um cansaço de alma – é um cansaço que diz “não vale a pena”. Diz, repetidamente, “não vale a pena” e mesmo quando nós ripostamos e queremos dizer “hoje eu consigo, hoje vou conseguir!” esse cansaço atravessa-nos os músculos como lâmina fria para nos dizer que nem conseguimos realmente tentar. É um ciclo vicioso; não dormimos e não estamos realmente acordados. Deambula-se pela casa na procura de qualquer coisa que não se sabe bem o que é e que nunca se encontra.

A depressão é o estar morto em vida. Não se morre num momento, morre-se vagarosamente, todos os dias. Assiste-se ao desintegrar do sorriso, nosso e de quem nos ama, ao desaparecer do ânimo, ao extinguir das palavras que por muito que nos sirvam servem-nos de muito pouco para explicar o que é a depressão.

“Tens de parar de ter pena de ti própria”, “tens de reagir, Inês”. Perdi conta às inúmeras vezes que indivíduos acharam que esta frase iria resultar na minha recuperação instantânea. Perdi conta às vezes que devido a estas palavras resolvi não ter palavras e esperar pelo depois da sertralina. – mas o depois da sertralina não ajuda. É apenas a ressaca de um delírio que não se resolve mas se tenta isolar para que os nossos vizinhos não nos olhem como os coitadinhos. Os loucos.

Depois da sertralina perde-se o acordar e o sentir dos pés frios, perde-se o delírio, perde-se o pânico, perde-se o choro. Fica apenas a ausência de movimento no corpo para que esta se concentre no crânio. Depois da sertralina vêm as dúvidas, a insegurança, o beco sem saída. Depois da sertralina ficamos a sós connosco mesmos e aí questionamos uma vida inteira e mais o pouco que ainda não vivemos.

Depois da sertralina a consciência da depressão e do que ela representa – não apenas a doença em si mas a necessidade de uma força quase sobre-humana para, primeiro, nos convencermos a ter força, e depois nos esforçarmos, dia-a-dia, para a ter.

Não se engane, caro leitor. Este flagelo não deve ser romantizado ou aperfeiçoado para que pareça uma maldição de conto de fadas. Quem sofre de depressão não procura uma catarse por meio de um vídeo cliché ou de frases feitas. Não procura a pena de quem de fora observa ou se condói. Nem os olhos pastosos de quem pouco sabe o que é sobreviver a cada dia com os quilos de um muro de pedra às costas.

Nós procuramos alguém que saiba, silenciosamente, que estamos aqui e que é real. Que não diga que somos loucos ou diferentes, mas, como tantos outros, lutadores contra uma doença difícil. Que o é, doença.

Depois da sertralina vem a parte mais complicada: desconstruir o muro que nos pesa nas costas e muitas vezes desconstruirmo-nos com ele. Aprendermo-nos de novo e aprender a aprendermo-nos. É precisa coragem e é preciso que a sociedade nos ensine também a ser corajosos. Que tenha espaço para as doenças de que ninguém quer falar porque as doenças de que ninguém quer falar matam, em estimativa, 1200 pessoas por ano em Portugal.

A verdade, caro leitor, é que nós não estamos preparados para este mundo. Mas este mundo seria muito mais simples se, depois da sertralina, nos ajudássemos uns aos outros a deixar-nos prepara por ele. 

 

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