10 Junho 2018      10:29

Está aqui

O demónio martirizado de Vercors

Ler numa mesma semana a fabulosa novela de Vercors (pseudónimo de Jean Bruller), Le Silence de la Mer, e um elevado número de excertos desse amontoado de páginas de pseudo-saber que é Atlas Shrugged, qualquer coisa como O Atlas Que Encolheu os Ombros e Foi à Vidinha Dele, de Ayn Rand, é experiência que pode influenciar de forma brutal o precioso mecanismo das conexões cerebrais e causar danos permanentes.

Ainda assim, é possível escapar, começando sempre pelo melhor, e esquecendo o que é de esquecer...

O silêncio do mar, que título notável; silêncio envolto em beleza potencialmente predadora que nos escapa por entre os dedos. Azuis-claros e menos claros, e o Sol lá em cima, laivos de laranjas/amarelos que atravessam o cone de silêncio (luz trespassa um prisma) e explodem suavemente em todas as direcções. O tubarão espreita mas o silêncio prevalece. O silêncio do mar – Silêncio-matriz: a resposta de uma família (tio e sobrinha) ao oficial alemão com quem foram forçados a partilhar a sua habitação, na França ocupada pelos nazis, e a quem decidem nunca dirigir qualquer palavra. Só que o oficial em causa, de nome Werner von Ebrennac, é tudo menos enquadrável numa matriz, homem de fortes convicções e com uma sincera paixão pela cultura francesa. Todas as noites, através de longos e solitários monólogos, von Ebrennac expressa a paixão que o assola, invocando os escritores franceses e os seus ideais, expondo
as diferenças entre os dois povos (reduzindo ao mínimo: rudeza e impulsividade alemãs versus erudição e grandiloquência francesas), povos, no entanto, destinados à complementaridade – ao reencontro, quais irmãos outrora desavindos. Escrito em 1942, publicado na clandestinidade e logo tornado símbolo da resistência, é um livro que nos desarma pela forma como ousa colocar o seu centro no olhar do outro (neste caso um elemento do exército invasor), o outro que nos espreita, que tem uma razão para o seu olhar, que não é maquinal, … que não é imune à perda – é um soldado que não pode ganhar a guerra que escolheu combater – e a aceita até ao limite das consequências.  

Passar por esta obra e não ser assolado por uma profunda comoção só é possível para quem já aceitou viver no absoluto vazio (i.e., a existir sem noção de existência).

-
Sobrevivemos; mais, percebemos a diferença, indelével, inabalável. Os que em nada acreditam passaram a poder acreditar em qualquer coisa, pois agora pelo menos já sabem no que não devem acreditar.

 

Imagem de gettyimages.pt